Al Di Lá

Você se lembra do filme Candelabro Italiano?

sábado, 8 de novembro de 2008

Sol a pino

Verão brabo. Dentro da minúscula casinha de máquinas a polia da bomba d’água quase não deixava espaço para que um homem se movimentasse. A pouca sombra que havia dentro mal cobria a figura enorme do Bertolino que se sentara num toco de eucalipto. Era chegada a hora em que os aguadores, sempre em dupla, trocariam o turno. Os da vez, já perto, se aproximavam do levante. Na frente, vinha um loiro baixote, barbudo, com um boné na cabeça, aspecto de desleixado e cara de poucos amigos. O outro, que vinha há uns metros atrás, era mais novo, aparentava uns trinta anos, era também baixo, porém moreno, cara imberbe, jeitão alegre. Como seu companheiro, trazia uma bolsa a tiracolo com a garrafa de café que mais tarde tomariam, já frio, com bolachas.
Bertolino, esperando a largada do serviço, estava sem camisa e seu corpo negro, quase azulado, brilhava com o suor que lhe corria pelos poros. Colocara a marmita sobre os joelhos para almoçar a comida trazida pelo loiro. Como de costume, os que eram rendidos no serviço ali mesmo se alimentavam, pois, do levante até o alojamento da granja, havia um eito de terço de légua pela frente.
Junto com o Bertolino, no mesmo turno, seu companheiro, um homem de formas abugradas e que parecia regular de idade. Não mais que cinqüenta anos. Tinham dado com os costados na zona das Capoeiras, quase na mesma época, e sempre foram amigos. Volta em meia, quando o serviço rareava por ser entressafra, eles se separavam por uns tempos. O amigo partia em busca de serviço pelas redondezas, enquanto Bertolino acabava ficando, como agregado, na volta do patrão antigo, como se fosse uma instituição da propriedade. Mais uma vez estavam juntos sorvendo, dia a dia, aquele cheiro bom que a lavoura de arroz exala.
O amigo, terminado o almoço, deixara-se ficar, à sombra de um salso chorão, na beira do açude. Enquanto fazia a digestão esperava o Bertolino almoçar para seguirem juntos até o alojamento. Tudo sem pressa. Mais tarde, quando o dia morresse, a janta, a cama... De manhã, bem cedinho, estariam ali de volta cuidando para que não faltasse água na lavoura.
Dentro da casinha a polia não parava de rodar. Na sombra escassa, o Bertolino, com a maior calma do mundo, dava uma colherada no prato e perdia-se em devaneio mastigando a comida. Sem dar atenção aos dois que haviam a pouco chegado, ele almoçava com aquela paciência infinita que a Virgem Maria, sua protetora, lhe dera. Paciência era o que o Bertolino mais tinha, depois, é claro, da beleza infinita dos dentes de porcelana.
Foi quando, nem bem começado o turno de trabalho, o loiro e o outro estavam se contrariando. Da contrariedade para a altercação foi um passo. Iniciaram os desaforos de parte a parte, com as vozes alteando cada vez mais. Bertolino, sem deixar de mastigar, ignorava os dois que discutiam. Levemente, sem mexer com a cabeça, de quando em quando, ele dava uma levantada nos olhos, em direção a eles, parecendo não se dar conta do que ocorria à sua volta, acostumado às arruaças a que já assistira. Levantou mais outra vez os olhos, baixou-os, outra colherada, e seguiu mastigando, mastigando. Mais outras colheradas...
Dava para ver que em boa coisa não ia terminar aquilo.
Os arruaceiros, de repente, se atracaram a socos e pontapés em direção à porta da casinha do motor onde o Bertolino almoçava. Assim como vinham entraram. Sem espaço para braços e pernas se agredirem, entraram num corpo-a-corpo e apareceram as facas. A polia em movimento, zunia. As facas cortavam o ar a centímetros, a milímetros, do Bertolino, e ele ali, colher no prato, colher na boca, mastigando...
Só quando o cabo duma das facas raspou a sua carapinha grisalha e um cotovelo desviou a colher da sua boca foi que ele, voz grossa, sem perder a calma, sentenciou os homens: - Se virá a minha bóia, vai tê!!!
Sol a pino. Verão brabo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Caro Amigo








Foi sempre com muita atenção que ouvíamos os mais velhos discorrerem sobre velhos assuntos como o desaparecimento do absinto, do rapé, do rum creosotado, dos corsos de carnaval, da 914, do a saúde da mulher, dos aguateiros e nem por isso nos melindrávamos. Os que vieram bem antes de nós contavam histórias em que os veículos se limitavam aos faetons, aos Modelo-T, aos dirigíveis e apreciávamos ouvir que existiram tais velharias. Agora, caro amigo, a ninguém deveria cair mal saber que já foi de brisque andar pelas ruas da cidade a correr numa Lambretta, numa Vespa, numa Java, numa Douglas, só para ficar nas vovozinhas da Bizz, ou passear num Sinca Chambord ou num Gordini quando eles eram o it na metade do século passado. Sabes? Antes, quando ainda estavas na Bolívia, a gente tirava retrato, usava espelhinho no bolso traseiro da calça far-West, pente de osso no bolso da volta ao mundo, usava guides, ia ao cinema ou a uma brincadeira. Às vezes, também se ía aos bailes do Beca, do Doca ou do Chico Barros. Se chovesse, colocávamos galochas para não embarrar o calçado. Na noite, tomávamos Fogo Paulista puro, ou misturado com Crush, Guaraci ou 17. Não chegamos a nos afeitar com navalhas, claro, já havia lâminas, mas, no cabelo usávamos Glostora, Gumex, e, antes de inventarem o Stilleto, primeiro, havia o Amor Gaúcho, depois, mais modernamente, o Toque de Amor da Avon para passearmos cheirosos. Fumávamos Belmonte, Elmo, Continental e apreciávamos comida feita com camarão seco e café com açucar mascavo. Para a fraqueza tínhamos o Wa-Ka-Mo-To e o Elixir de Scott; para mal-estar o Alka Seltzer. Íamos a presépios-vivos, usávamos conga e, por pura exibição, piteiras quando o cigarro ainda não vinha com filtro. Pois é, foi assim que assistimos chegar na cidade a primeira televisão trazida pelo seu Mércio, ouvimos o primeiro rádio da faixa cidadão do seu Otavio, vimos o Marcos Prestes montar o primeiro computador e o João Saraiva nos apresentar a um telescópio. Põe paciência no que lês, meu caro. E não te queixes das velharias que escrevo, pois, pior, foi vivê-las vendo este teu maravilhoso mundo de hoje.

Anistia

Aula de sociologia. O Professor Gilberto Gigante discorria sobre o momento histórico que o País vivia naqueles estertores da ditadura. Na penúltima fila da classe estava sentado o Dedé. Na última fila, atrás dele, o Caluxo Gastal e eu. Do início da matéria até quase o horário de fim de aula o professor tinha, à exaustão, repetido umas trezentas vezes a palavra anistia. Lá pelo meio da aula eu sentia que a cabeça do Dedé tentava se virar para falar conosco, fosse para entrar no nosso assunto de fim de fila, enfadado, talvez, com a chateação do Gigante, ou, quem se animaria a duvidar?, fosse para trocar algum comentário sobre as intenções do Governo Figueiredo. Assim, a aula se arrastava como uma coisa que não tinha fim quando, não se agüentando mais, com a mão em concha na boca, ele se virá para traz e nos pergunta, quase sussurrando: Guris, o que é afinal essa tal de anistia? Eu, me chegando para perto do cogote dele provoquei: o quê!!! Tu ainda não sabes o quê qui é???... Não deu outra. O Dedé, se virando novamente para trás, com o queixo bem encaixado no ombro, revirando e piscando os olhos, me sentenciou: Te mete a esparramar que eu não sei. Te mete...

Tité & Tetê

O Seu Tetê é o motorista com o maior número de histórias desastradas que se tem conhecimento na história do município. Morava na cidade e trabalhava na campanha, onde se locomovia com um fusquinha ano 77. Quando ía, no início da semana, para o local de serviço, sempre causava uma estrepolia na estrada. Na ida, havia sempre um incidentezinho. E, na volta, para não desmerecer a fama de mau condutor, também o Seu Tetê criava uns probleminhas de direção. O normal, já era costume, ele deixar o fusca no chapista, às sextas-feiras, para pegá-lo, restaurado, sem nenhuma arranhão, na segunda, quando ia fazer a pegada na granja. Na estrada, com o automóvel flamante, quando alguém o ultrapassasse, de certeza certa ele dava uma guinada no volante e estava feita a porqueira sobre um barranco. Quando era alguém que se aproximava em sua direção, ele, muito noveleiro, com a curiosidade de conhecer o outro motorista, e cumprimentá-lo, pensando que estava tirando um fininho, lá ía-se um espelho, ou outro dano fatal à lataria. Num fim-de-semana, após a largada, abastecendo o fusca no Posto do Tité, este, já com pistola no tanque de gasolina, perguntou: - Ué, Seu Tetê, o seu carro da última vez que veio aqui não tinha este amassão, no para-lama... Foi, então, que ele, como quem conta uma coisa admirável, entregou sua última barbeiragem: - Tu não acredita, tche!, a ursada que este carro me aprontou... Não vê que eu soltei a embreagem dando uma marcha-à-ré, para sair no portão, e ele disparou ao contrário, para a frente, se planchando na parede da garagem!!! Tava em primeira, o louco!!! Que ursada ele me aprontou... Como nunca... Que ursada!!!

terça-feira, 19 de agosto de 2008

DOCA & CIA

Digamos que o tempo voltou atrás e que no próximo sábado haverá um baile no Salão do Doca. Você arriscaria um palpite sobre a quantidade de gente que iria, hoje?... Mas, naqueles idos, seria temerária a pergunta frente à pronta resposta. Na verdade, tudo mudou como muda a água para o vinho. Não há mais bailes do Doca. Para os saudosistas é como gato miar em tapera. Babaus! Foram-se, juntos, na mesma fornada do tempo os bailes do Beca, os do Chico Barros, os do Salvador e os do Tirso, na estrada da Costa do arroio. Vizinhos um do outro. De roldão, foram-se os bailes do Tailor, os da Casa Queimada, os do Diomar, estes na estrada do Herval, na Airosa Galvão, nos pontilhões da Ceguinha e na Divisa, nesta ordem. Os da Granja São Paulo, os do Seu Willi Peter, para os lados do Chasqueiro, e os da estrada das Capoeiras, lá no Lauro Cavalheiro, lá na Granja dos Conceição, lá no Paulo Mello, lá nos dos Mata-Burros, do Seu Pedrinho Nunes. Nunca mais os bailes do João Freitas... Quié deles, Meu Deus?! Como o tempo nos consome... Tenham piedade e não nos levem a mal: não lamentamos a falta que nos fazem, até por que hoje existem muito mais bailes, e melhores que os de antanho. O que lamentamos é este desgaste que o tempo nos legou e não nos entrega enxutos, como éramos, para as picardias. Hoje, somos pura sucatama e carregamos uma enorme saudade dos ardis que usávamos para entrar, sem pagar, nos salões de dança. Imaginem, sem profundidade intelectual, o que era assistir ao Neneco chegar, num Doginho Polara, do ano, no Salão União da Mossidade (letreiro na parede de fundo da copa) do Diomar e abrir a tampa de combustível do gerador que alimentava o som do José Iaks, para despejar um copo de cerveja? E, depois, quase ao ponto de levar uma sova dos músicos, o Felipe se apresentar como mecânico e eletricista? Era o caos total e nós todos lá dentro, por conta do imbroglio provocado. E assistir ao Doca afrouxar a vigilância na cancela do salão? Como? Simples. Para cada estação do ano um ardil. No verão levávamos uma garnisé do João Duarte para gritar até o Doca enlouquecer... Na primavera, roubávamos rosas da Praça para despetalar no portal do salão. Mais loucura... No inverno, bergamotas da Fruteira A Maluquinha, do Sílvio, para espargirmos o soro das cascas nas narinas do Doca ou inteiras, rolando salão a dentro. Loucura Total... Liberação total da cancela do salão... Quando não eram as galinhas que ele pensava estivéssemos roubando, eram as rosas, ou o assalto à quinta. E no outono, para entrar? perguntarão... Ora, para que existe a batata inglesa, cortada ao meio, e um canivete para falsificar o carimbo na mão, ou da senha, se tínhamos o Pachola para levar as almofadas, de tudo que era cor, lá do Tabelionato do Levi?

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A COBRA

A tarde cálida morria mostrando um sol vermelho lá para os lados da Barragem do Chasqueiro. No açude do Trajano os amigos ordenavam as tralhas da pescaria. O Padreco - mal chegado -, fominha por pescaria, estava com água pelos joelhos, e com o caniço de lambaris, já tirara isca para umas duas linhas. O Padreco é que providenciava linhas para todos e eles ainda estavam às voltas com a barraca, a caipirinha, o carvão, os espetos e a carne - esta o motivo maior da noitada. Quem eram os outros? O Neri, o Agrelo e o Monterinho. Cada um na sua tarefa, e todos no religioso ofício de se preparar para o churrasco que viria. Súbito, de dentro do açude, um grito do Padreco suspendeu os afazeres. Tinha sido mordido por uma cobra, dentro d’água, e, assustado, mostrava indícios de um provável desfalecimento. O Neri se prontificou a levar o quase moribundo ao Pronto Socorro da Santa Casa, enquanto os outros esperariam. Na ida o Padreco – branco - não pela picada, mas de susto, com voz sumida de doente assumido, fez um seu último pedido ao Neri: Que ele - e o pedido era feito precedido de um Por Amor de Deus - cuidasse da sua família, mormente do estudo da filha, pois, previdente, tinha economias para tanto na Caixa Econômica Federal. O Neri, que cuidava da direção dada a correria, ouvia atento e atenciosamente prometia cumprir o pedido do amigo. Chegados, examinado o doente pelo Jeorge Vernes, foi ele dado a pronto por ter sido mordido por uma cobra inofensiva e não peçonhenta. Lépido e faceiro, pronto para voltar à pescaria, o Padreco sentou-se no carro e o Néri tocou para a Associação do BB. Chegando, desceu do carro, fez a volta e abriu a porta do carona dizendo: - Pronto, estás em casa... O Padreco, não entendendo a deixa, argumentou: - Ué, não vamos voltar para a pescaria? - Não, lascou o Neri, que estava de gerente do Banco, à época. E arrematou: - Então, que qui tu tás pensando? Trabalhas comigo todo este tempo e vais prestigiar a Caixa Econômica com as tuas poupanças. Desce... Tchau!!! Com uma lua por testemunha, meia hora depois (ninguém sabe até hoje se eles sabiam lidar com linhas e anzóis), estavam os três, em companhia do churrasco e da cerveja gelada, rindo da sacanagem que o Néri aprontou ao investidor Padreco.

SETE QUADRAS

Sete Quadras, Querido, Espada Nua, Catão... Seres que povoam a minha cachola e dos quais guardei o jeito de andar, de vestir, de falar, sem nunca ter me preocupado em saber os nomes de batismo. Hoje, taí..., tenho precisão e não acho quem me socorra nesta terra do Irineuzinho. No entanto, como nem tudo ao santo, nem tudo ao diabo, fiquei com a nostálgica lembrança dos momentos em que nossos destinos um dia se cruzaram. Quem esqueceria a figura do Querido, carregando um porrete que era para sua apresentação de armas. Sempre vestido com uma túnica militar, toda bordada de condecorações. Tempos em que as garrafas traziam rolha por dentro da tampinha e era só prender no tecido - por dentro uma, por fora a outra - para colocarmos mais uma medalha no peito do nosso General. Quem, dos da nossa geração, não tem uma passagem, uma pequena historia sobre o Querido? Mas, deste, e dos outros nos ocuparemos noutra olada. Agora, a figura que veio a minha lembrança foi a do Mingau da Coxilha do Fogo. Desenhozinho de estatura baixa, estranha, mala vuelta, braba que nem zorrilho, sempre carregando um relho na mão, escorada no ombro a argola e a trança de seis caindo pelas costas: era só chamar de Mingau e estava feita a porqueira. Rebolava o relho e a gurizada deitava o cabelo. Nos idos de cinqüenta, teatino lá das Cacimbinhas, veio ainda moço, morar na cidade, o Timotéo, pessoa de estatura alta, enorme, e de índole arruaceira. Vai daí que, sabedor do apelido do baixinho entonado lá da Coxilha, resolveu implicar para ver no que dava. E assim foi feito. Um dia, o Timotéo esperou ele descer a Doutor Monteiro, entrar na venda do Seu Hernandez e, à sua saída das compras, implicou: - E aí ô Água Com Farinha?... Tamanho não é documento, hein?... Não prestou! O ofendido tirou a maleta do ombro, passou o relho para a mão direita, e com um olhar de fúria, de cima para baixo acompanhando a altura do outro, entesou: - Aquece a água e mistura com a farinha. Aquece, aquece... Mistura, mistura... que tu vais ver o que é bom prá tosse...

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O latinista (Ad argumentandum tantum)

O Doutor Lauro Medeiros de Albuquerque, advogado, professor, criador, pessoa de proeminência na cidade, era um apaixonado por história e por latim. Dava gosto ouvi-lo quando o tema em aula era a Guerra do Paraguai. Só ele se referia à Batalha de Tuiuti, a mais sangrenta de todas, com tanta vibração, com tanto enlevo nos gestos. Osório, o vencedor de Tuiuti; Caxias, o comandante vencedor das forças brasileiras, em Itororó, Avaí, Lomas Valentinas e Angostura. Vibrava quando se referia aos Voluntários da Pátria, à armada brasileira, às famosas retiradas, aos ataques majestosos do exército imperial. Tudo, na voz desse saudoso professor, mexia com o nosso ufanismo. Só ele esparramava latim com tanta propriedade. A nossa atenção às suas explanações sempre valiam boas notas, muito mais que as sabatinas. Como causídico, também brilhava com seu latim pelos plenários de Júri. Num deles, no Herval, em que abraçava uma tese de legítima defesa, o Doutor Lauro exaltava, em latim, um episódio sobre Assis Brasil, tido em seu tempo como um exímio atirador de arma de fogo: Atacado em campo aberto por um touro, errava os disparos contra o animal. – E olhem que era o Assis Brasil – repetia o orador... O plenário silencioso escutava atento. Atuava na parte contrária o Doutor Cândido Norberto que, em dado momento, lá pelo quinto tiro errado, não se conteve e lascou a pleno pulmão: - Eh! Touro de sorte!... Assim era. Vagam pela nossa lembrança, ainda com o mesmo vigor daqueles tempos ginasianos, as expressões latinas que ele tinha paixão em apresentar com as prontas traduções. Brocardos que ele cultivava, além das suas lides forenses, nas aulas de história, no encontro com amigos. Aforismos que brotavam com naturalidade, com exagero, até. In illo tempore, dizia, quando se referia ao passado. Se alguém o cumprimentasse, quando a caminho do Foro, lá vinha latim: Hoc opus, hic labor est. Frente às situações ou provocação entre estadistas, nas notícias de jornal, nascia um abyssus abyssum invocat... Contava o poeta Lauro Machado, que estando um dia o seu cunhado Mário à porta de casa, ao sol, cumprindo a tarefa de colocar remédio no nariz do Paulinho Carriconde, à época um menino de cinco anos, foi surpreendido pelo cumprimento do Doutor Lauro, que por ali passava: - Bonus pater familiae, que fazes? O Doutor Mário, sem largar o queixo do filho, espremendo o conta-gotas, calmamente respondeu, em bom latim: - Butare remedius nauseans infantibus. Só para argumentar...

O Mediador

O desfecho da briga do Otacílio da Currucha com o Cabeça, na década de cinqüenta, serviu de mote para terminar outra encrenca que aconteceu, muitos anos mais tarde, entre contendores diferentes. O motivo desta desavença foi um comodato de terreno entre o Velho Pereira e a Dona Joana, mãe do Ataíde Pipoqueiro. Quando ela ficou velhinha o filho pipoqueiro resolveu por em dia os teres e haveres da mãe. E, dentre eles, havia uma nesga de terreno que ela cedera ao Seu Pereira, para que o caminhão deste pudesse manobrar melhor ao entrar na garagem. Ora, o Velho, já não tendo mais o caminhão, acreditava que o terreno, que nunca tivera cerca, pela perda da serventia, também estivesse fora de sua posse, sem necessidade de entrega solene. O outro, preocupado com o patrimônio da mãe, acreditava que o Velho ia ficar de dono do terreno. E foi assim, num clima de animosidade por parte do Ataíde, que ele procurou o Velho para por em dia a questão. Com conversa daqui, conversa dali, num rodeio verbal já indo longe, o Ataíde enfim entra no assunto que o Castelhano Pereira já esperava. Não terminou de falar e começou a xingação em portunhol, e dali foi tudo rapidinho para as vias de fato. Depois de dar uns quantos tapas no Ataíde, o Velho se enfureceu e passou a atacá-lo com pedaços de tijolos que havia no aterro da rua. Com um último tijolaço no peito e todo lanhado no rosto o Ataíde Pipoqueiro acabou indo para o plantão da Santa Casa. E foi lá que o Tité, sabedor da briga do pai e preocupado com a confusão que redundaria em processo, foi levar seus cuidados e apoio ao infeliz pipoqueiro. Prontificou-se a acertar despesas com curativo e analgésico tudo para ver se dourava a pílula. Mais, queria levar o ferido para casa poupando-o de uma dolorida caminhada. Desculpava-se pela ação errada que o pai praticara, e, sobretudo, enaltecendo a harmonia que sempre existiu entre vizinhos, aplicou um golpe de misericórdia no Ataíde: Agradecia-o por ele não ter sovado o Pereira, que já era um velho e coisa e tal. Resultado, dando uma bomba dessas no Ataíde, a coisa morreu por ali, sem inquérito, sem polícia, numa boa...

Tio Julio

Tio Júlio, ou Vô Júlio, como o chamava. Na verdade era um tio-avô. Da sua figura o que mais lembro eram os óculos parecidos com os que imortalizaram a figura do John Lennon: lentes redondas e com um aro fininho. Ah! Não esqueci também o permanente uso de colete. Num bolso ele trazia o relógio com a corrente de ouro, presa na casa do botão e, no outro, a faquinha para picar o fumo crioulo. E dá-lhe palheiro! Até hoje, ao lembrar a sua figura bonachona, meus sentidos parecem entrar em contato com o agradável cheiro daquela fumaça e o aroma daquele pito. Era criador e, como paixão maior, gostava de lidar com Frutos do País, como eram chamados os couros e pelegos que ele saía a comprar pelo interior do município. Tinha como ajudante o Cirilo, um dos filhos solteiros que estava sempre à sua volta. Certa feita, quando o Seu Amaro Caetano, também comprador de couros e pelegos, comprou um Modelo A, da Ford, para substituir a carroça, o Vô Júlio observou ao Cirilo, apontando o cano da descarga do automóvel: - Vês, Cirilo, aquela fumacinha? Pois ali vai todo o dinheirinho dele! Mas, uma semana depois da observação, quando pai e filho puseram o faeton na estrada para comprar couros sentiram a dura realidade dos tempos: O Seu Amaro, no guarda-louça, já tinha comprado primeiro tudo que era pelego e couro da campanha, numa passadinha, já que agilizara o modo de negociar. Não deu outra. Foi de imediato que o Vô Júlio mandou o Cirilo para a cidade, com dinheiro no bolso e uma recomendação: - E não volta sem me trazer um automóvel do ano, e faeton, para a gente driblar a concorrência. Comprado o carro os negócios prosperaram, por anos a fio. O Cirilo foi o seu motorista, também, quando adquiriu um moderno caminhão da marca Fargo para continuar envolvido nos negócios de Barraca, como ele dizia. Lembro o dia em que o Cirilo, já madurão de idade, casou. A Cerimônia foi na Igreja. Na hora H chegaram para o casamento os dois, pai e filho, acompanhados do Tio Olívio. Desceram a calçada da Praça e o Vô Júlio, manheiro, ainda deu uma fumada no puxo de palha, antes de amassá-lo na areia da rua. Atravessaram na diagonal e subiram, proseando, os degraus da Igreja. Quando entraram, ai Minina! O Vô Júlio, cara-a-cara com aquela imensidão do templo, admirado, olhando a nave arredondada, lá em cima, não se segurou: Mas, Olívio, que Barraca bem linda dava isso aqui! O que ia caber de couro e pelego... Já viste, tchê?

quinta-feira, 19 de junho de 2008

CAFÉ CAPRI

Anos sessenta. Estávamos reunidos numa mesa ao canto, com o janelão à nossa frente, numa roda de cafezinhos e martelos. À espera, claro, dos bolinhos de carne da Maria da Currucha que o Dé trazia, costumeiramente, ainda bem quentinhos, aos fins da tarde. No balcão não estava nem o Tritri, nem o Aldi para atender-nos. Apenas o proprietário, o Seu Ciro, a olhar para a nossa mesa com um olhar perdido. Nada falava, nem nada perguntava. Nós, também em flirt, nada solicitávamos embora precisássemos de um pequeno abastecimento de água ardente. Foi quando surgiu uma idéia: Vamos fazer um requerimento pedindo mais outro martelinho? E, nele, dando ao Seu Ciro um largo tempo para nos servir? Dito. Feito. Com o escritório bem pertinho do Café, em minutos o documento foi elaborado e protocolado no balcão: Ilmo. Sr. Ciro.... Nós (Sérgio Canhada, Marta Rocha, Renato Müller, e Outros), vimos pelo presente, respeitosamente, perante Vossa Senhoria, requerer, dentro das próximas quarenta e oito horas, se não for incômodo, seja trazido até nossa mesa mais um martelinho. Pedem atendimento, Arroio Grande, etc... À medida que lia o velho foi perdendo a cor e, brabo, deixando o papel em cima do balcão, saiu para os fundos do salão. Para a nossa cabeça estava a porqueira feita... Voltaria armado para uma briga? Era esperar para ver no que daria a picardia. Minutos depois, quando voltou, para a nossa surpresa, trazia um copinho que encheu com a branquinha. Depois, vindo em direção à nossa mesa, antes de colocar o martelinho sobre ela - e olhando, justamente para mim -, lascou: Isso só pode ser coisa tua!... Mais outra doma ali no Café?... Bem, aquela tinha passado! Mas, aconteceram outras passagens, inúmeras... Como a da noite em que tinha baile no Doca e o Aldi estava de atendente. O Macksoud, sabendo que o Arnaldo se dirigia para o Café, sem um tostão no bolso, avisou-nos - os mesmos de sempre -, da molecagem: atara numa nota de dinheiro, à época de importância considerável, um fio de náilon, quase invisível de fininho. Abrira uma fresta nas portas internas do balcão que tinha vidro na sua frente e, dali, observaria a nota de dinheiro no chão de jeito a pescá-la antes de ser agarrada e acabar em prejuízo a brincadeira. Não deu outra. O Pila chega, avista a nota no chão, espertamente segura no osso do peito, e pede um cafezinho. Em seguida, disfarçando ajeitar a meia, faz a primeira tentativa. Dali donde fresteava o desfecho o sacana, vendo a mão do outro aproximar-se da nota, dá uma puxadinha no fio e coloca-a mais para baixo do balcão. Mais um trago no cafezinho e o Pila dá a segunda investida: Disfarça para arrumar a outra meia e passa a mão no chão. De novo, não vem com nada... O bandido, lá do outro lado do balcão, tinha dado mais um puxãozinho para dificultar a manobra. Resultado: Não demorou muito e o coitado, noutra tentativa desesperada, tendo perdido toda a noção do ridículo, estava, de terno e gravata, como viera vestido, deitado no chão, agora, com todo o braço embaixo do balcão, procurando a nota que salvaria o seu baile no Doca. Não lembro quem não agüentou, e riu. Mas, não esqueci a cena. Ofendido, o Arnaldo foi para a porta do Café. De lá, brabo, numa sujeira lamentável, bradava: Aqui não tem homem... Se tiver que saia que ele vai aprender a não fazer gracinhas... Filhos disto, filhos daquilo, e mais uma centena de frases impublicáveis. Saiu alguém? Não saiu ninguém. Que ninguém era bobo, mesmo. Éramos só moleques e tínhamos acertado outra.

MEUS TIPOS (Yo quisiera...)


O Gilberto Alves foi a pessoa mais alegre e brincalhona que conheci. Foi funileiro e latoeiro naqueles tempos em que o plástico ainda não tinha invadido nossas vidas. Canecas, bacias, calhas e uma série de objetos, que hoje encontramos em matéria plástica nas prateleiras das lojas, saíam de suas mãos, em folha de flandres ou zinco, com um perfeccionismo impressionante. O Gilberto era mais conhecido pelo seu apelido de Picão. Sempre tinha uma história engraçada para contar e quando a iniciava, já rindo, preparava a gente para o seu desfecho hilário. Mesmo quando um causo merecia seriedade ele inseria, sério evidentemente, aquela graça que cativava os ouvintes. Figuraça. Nas suas histórias, quando os olhinhos brilhavam, podíamos esperar que vinha chumbo, e do grosso... Foi um dos melhores amigos do Papaco Velho. Juntos aprontaram à vontade e cultivaram a irreverência por esta terra do Irineuzinho. Desses dois, uma das simploriedades que mais apreciávamos era um ajudando o outro a relembrar as comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente o discurso do Seu Miguel Aliodes. Contava o Picão que quando noticiaram a Paz, o povo foi para as ruas fazer o carnaval de sempre. Justo nesse dia, o 14 de agosto, o Prefeito Mário Correa inaugurava um gerador a diesel na Usina. E foi depois de cortar a fita que o povo se manifestou, num púlpito colocado na esquina sextavada do prédio. O Seu Miguel, que era desembaraçado para qualquer coisa, pediu a palavra e lascou um discurso: Quando Mussussolini (o Duce) invadiu a Missisalbânia (Abissínia), em el año de mil ciento e siete... Nesta altura da louvação havia a intervenção do Papaco para dizer que, fazendo as contas direitinho, havia um erro de data de oitocentos e tantos anos. Mas, o discurso inflamado prosseguia: Em esta hora, em esta hora, yo quisiera ser la gran cachorra de la Inglaterra para pisotear los alemanes y para dar uma mordida no calcanhar del Japon... E se entusiasmava o Seu Miguel exibindo a sua careca: Yo quisiera... Yo quisiera... Do jeito que discursava ele deixou a bola quicando, quicando. Quando repetiu Yo quisiera... pela terceira vez, lá do fundão, sabe? O castelhano Espanton, entrando de gaiato completou: Uma peruca postiça... E detonou o célebre discurso que ficou gravado, até então, na oralidade, como uma das mais bonitas peças do nosso anedotário.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Meus Tipos

O Rosalvo Pitanga, negro retinto, como o apodo explica, prestou serviços, por muitos anos, na Wilson & Sons, multinacional inglesa que operava com Barraca em nossa cidade (para os mais novos, as atividades destas barracas consistiam em comprar couros vacuns, pelegos e lã de ovinos denominados de frutos do País). Rosalvo, após desligamento do emprego, ganhou de presente dos ex-colegas uma carroça bem pintadinha, com os letreiros de “Faço Frete”, nas laterais, com a qual se iniciou no ramo de fretes. Assim, passou a ganhar seu sustento, e mais o da sua prole, ali mesmo, defronte à casa que lhe empregara por longos anos, onde faria fretes para a casa de materiais de construção do Andres, que ficava, à época, a bem dizer, porta com porta. Corriam os dias... Diariamente, o Rosalvo estacionava seu veículo na calçada e ali ficava, sempre vigilante, lagarteando ao sol, à espera dos fretes. Certa vez, manhã linda de sol, com a carroça, por um motivo desconhecido estacionada um pouco adiante, à porta da garagem do Jorge Soares, acabou vítima de uma molecagem que ilustra o anedotário da cidade: O Rosalvo Pitanga, encostado na janela da barraca, observava seu veículo. Petiça atrelada, com os corriames ainda em forma, e as letras que anunciavam a sua atividade. Distraído, apreciava o presente ganho e matutava sobre o futuro... Sorria, mostrando a quantidade imensa de dentes que - como dizia o Seu Venâncio - Deus lhe dera por natureza. Foi, assim, que o Jorge, vendo que ele estava meio longe, saiu à porta, quase de costas para ele, como se ninguém estivesse na calçada e se chegou para perto da carroça. Com a mão na testa, como se o sol o atrapalhasse, e simulando dificuldade em ler o que estava escrito na lateral do veículo, soletrou, em voz alta, para que fosse ouvido pelo Pitanga: “Es-ta-ca-rro-ça-é-de-um-vi-a-do. Dito, sem se virar para o lado onde estava o Rosalvo, entrou para sua garagem. Entrou e ficou esperando o efeito da frase que soletrara. Não deu outra. Foi prá já e o Rosalvo, de fininho, subiu na carroça e deitou o cabelo em direção à oficina do Adão Bidiva. Sumiu por coisa de meia hora. Na volta estacionou a carroça no mesmo lugar. Mas, agora, com os letreiros todos borrados e apagados com tinta preta: O Rosalvo Pitanga, por não saber ler, tinha embarcado na gozação do Jorge e tirado o letreiro que, supunha, dizia muito mal do seu estado de feliz carroceiro!!!

A Visita

Figueirinha, manhã bonita. O cordeiro mamão recém carneado esfriava enganchado na trave do galpão. O Velho Lauro fazia uma enorme fogueira de branquilho à espera da carne e o Nitinho, o aniversariante, falquejava uns espetos de pitangueira. Tinham combinado um churrasco e a canha já rolava a bom pedaço. Nisso, numa falha do valo de árvores da beira da estrada, deu pra avistar o Irani, conhecido deles e morador lá do Quilombo, montado no rosilho magro. Chegaria, como sempre, para matar a bóia. Acostumado no expediente, ele era useiro e vezeiro em dar uma passada na casa dos vizinhos, ou conhecidos, da beira da estrada, perto da hora de almoço. Então, quando tinha milharal na vizinhança, disfarçadamente, ele metia o matungo numa lavoura alheia e se chegava com as garras nas costas, com a desculpa de que o animal ficara pastando no corredor. Nesse dia, os amigos, que broma! Olharam-se no maior desânimo do mundo pela inusitada visita. O Irani, faceiro por ter enxergado fumaça, e a cachorrada brigando por uns bofes perto da mangueira, se chegava para a sombra da figueira onde se pendurava o charque. Desceria do cavalo e afrouxaria o basto, devagarinho, sem muita pressa... O Velho, amuado com a visita, não pensou duas vezes e arriscou um plano: recepcionou o Irani com dois latões de querosene, daqueles de vinte litros, dizendo: Que bom! Foi Deus quem te mandou, cara! Vamos matar a porca – e deu uma olhada em direção ao chiqueiro -, estamos precisando de ajutório... E saiu com as latas à espera do resultado. O Irani, paralisado, olhando para o chiqueiro, para a enorme porca, que não caminhava de tão gorda, pegou o peão na unha e emendou uma saída honrosa: Tchê! Cheguei só pra dar um cumprimento e apertar a cincha, tenho de chegar à cidade antes do meio-dia... O Lauro, no açudezinho, fazendo que enchia as latas de água, por cima do ombro apreciava a cena... O Irani nem chegou a ver o Nitinho e já estava na estrada... Com o rosilhinho a trote frouxo, de certeza certa, foi matar a bóia logo ali, no primeiro conhecido que tivesse milharal por perto. Eta, Figueirinha!

Os Macacos

Apelidos. Aqui, onde existe uma grande diversidade da fauna com ratos, gralhas, galos - vários deles suficientemente repetidos -, temos muitos macacos: o louco, o gordo, o pedreiro, o rabão e outros... Pois, para supremo gozo da molecada, o Seu Alvim tinha dois apelidos: Um da fauna e outro da tecnologia da época: Macaco e Caminhão. E nós, que, seguramente, não o poupávamos, temos muitas histórias na lembrança. Uma delas:

Domingo. Fim de uma invernada braba, tapete verde completamente encharcado, no campo de futebol do Esporte Clube Arroio Grande. O Seu Belinho Hernandez, debruçado na cerca do campo, olhando uma partida do seu time, que enfrentava um adversário castelhano daqui da Coxilha, vendo que o Alvim Caminhão se aproximava devagarzinho, como era costume, cumprimenta-o muito respeitoso. Ato contínuo, com o humor, olhando para o chão, avaliando aquele imenso lodaçal, aquele barreiro de dar medo em galochas, lascou: - tu deves ter chegado aqui com muita facilidade, Alvim... Prestou atenção para uma jogada em que o Tritri atrasou a bola para o Jamel, e completou: Foi só colocar umas correntes nas rodas e vieste no bem bom... Ao que o Alvim Caminhão, em enorme desamparo, se lamentou: - Pô! Até o senhor, Seu Belinho!
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Negro, com tez amulatada, vindo das bandas do Herval, o Alvim era maleiro na estação rodoviária e tinha como paradeiro uma pequena peça cedida no Hotel do Seu Chico Bonneau. O Alvim era baixo, gordo, com a testa achatada e os braços pendidos ao longo do corpo. Suas pernas tortas em ganchos, em tudo davam razão ao outro apelido, principalmente por seus olhinhos pequenos e redondos, muito juntos do nariz, no meio dum carão imenso. Sempre com as mãos torcendo pedaços de arame a envelopes de sonrisal jogados fora. Xingava meio mundo quando era chamado por apelido. Às vezes, com preguiça de soltar o verbo – por que não havia nenhuma mulher por perto, para ouvir as bandalheiras que saiam da sua boca - até deixava passar nossas brincadeiras quando buzinávamos a sua passagem. Mas, para nossa saudade - saudade mesmo -, se o chamássemos de Macaco Rabão, ele diminuía o passo e se postava virado para o rumo da zombaria, desfiando uma infindável coleção de bandalheiras... Minha Nossa! Valia a pena!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A Lixa

O Cidoca, a despeito de não saber ler nem escrever, tinha como recurso uma muito boa memória. Seguidamente ajudava o Jaime, seu cunhado, no armazém que este tinha na rua Dr. Dionísio. Neste mister, as latas de compotas, sardinhas, leite em pó e outros artigos, quando as prateleiras eram arrumados pelo Cidoca, corriam o risco de se apresentarem de pata para cima, posto não ter ele a mínima idéia de que as letras tinham uma determinada regra para serem lidas. Para ele o que bastava para conhecer o produto era o desenho da lata. E, neste particular, a figura de um pêssego, duma sardinha, ou de uma rodela de abacaxi, sempre estaria corretamente disposta em qualquer sentido que se apresentasse o que não deixava de ser lógico, em se tratando de estampas. E, no affair de caixeiro, quando se enquadrava de apontar os pedidos de livreta, ele usava o recurso da boa memória e ditava, para o Jaime, quando este voltava ao armazém, sem errar tin-tim por tin-tim, qual cliente e a mercadoria que deveria ser anotada. Vai daí, o Cidoca, além da memória, como atributo, era muito brincalhão e não era avaro em esparramar seus chistes no trato com as pessoas. Prova disso, um dia, a Dona Tetê, vizinha e freguesa da venda, aproveita a oportuna presença do seu afilhado Toquinho, que lhe acompanhava em casa, para que ele fosse até a venda do Jaime para trazer, na livreta, um rolo de papel higiênico - e que fosse correndo. Pede e se manda para o banheiro, dor de barriga, sei lá... O guri, bem mandado, chegando à venda, faz o pedido ao Cidoca, que no momento estava de balconista. Sem calcular a pressa do Toquinho, que viera em correria, o balconista improvisado enrola uma lixa de madeira, nº 100, e lhe alcança. Assim que botou a lixa na mão o Toquinho deita o cabelo de volta como viera, sem dar tempo ao Cidoca de desfazer a brincadeira que iniciara. Bem, o guri, chegando dentro de casa, com a encomenda, bateu na porta do banheiro e entregou o pedido para a madrinha... O resto da história conte o afilhado da Dona Tetê que está aí, são de lombo e foi o protagonista!

A Rifa

O Dé foi garção, por anos, no Restaurante da Dona Maria Camerini. E, como havéra de ser, muitas vezes, incontáveis vezes abusávamos da sua ingenuidade. Mais, abusávamos da bondade dele. No entanto, diga-se, a bem da verdade, ele também se aproveitava da situação e tirava a sua casquinha. Constantemente, ora apresentando um Livro de Ouro, ora oferecendo uma rifa para ajudar o Clube Guarani, ou fosse promovendo um evento que exaltasse as mulatas - sempre lindíssimas -, ele chegava e dava a facada. Certa feita, hora de almoço no restaurante, ele já tinha vendido vários números de uma rifa e eu estava sentindo que chegava a minha vez de também marchar com um número, sem que me assaltasse uma idéia para fugir da situação. Lá pelas tantas, às escondidas do Dé, perguntei ao Zé Antônio Franco, que na oportunidade tinha a rifa na mão, fazendo seu palpite, se o treze já estava vendido. Estava. Avaliada a informação, antes que chegasse a minha vez de comprar, chamei a atenção do Dé para que ele reservasse o treze para mim, e esperei. Quando a rifa chegou às minhas mãos, enquanto dava a desculpa de que o único número que me servia já estava vendido, li o nome da compradora: Maria do C. Rosado - com o prenome abreviado -, pessoa a quem eu não tinha a mínima idéia de quem fosse. Vendo o nome, tão sugestivamente grifado, perguntei ao Dé, sacanamente, fazendo um gesto de rosquinha com o polegar e o indicador, quem era a compradora que tinha o rosado, que eu gostaria de conhecer. Lembro que fui levando na brincadeira e acabei não comprando nenhum número daquela rifa. Passaram-se os anos... um dia, prestando favor a uma amiga, busquei uma torta de amendoim na casa da Dona Carminha, que morava na esquina da Praça da Matriz. Foi bater na porta e ela, atendendo, olhou-me, surpresa, e lascou: u quê?! Ainda ti animas a pisar no meu portal? - Esqueceste aquela vez que o Dé veio chorando me contar aquela sem-vergonhice tua? -Eu, Dona Carminha?... E ela: - Sujera, no meio de um mundo de gente, lá no restaurante do Caixeiral, mexendo que eu tinha aquilo vermelho?! Ti manda daqui!... Maria do Carmo Rosado, Dona Carminha, número treze naquela rifa... (Depois me queixava que as coisas estouravam sempre em mim...).

domingo, 27 de abril de 2008

Destinos

O Seu Alcidezinho foi famoso como relojoeiro na cidade. Sua primeira pergunta de cunho profissional ao cliente com o relógio emperrado tinha três partes: Este relógio caiu no assoalho, no chão duro ou na areia? Frente a qualquer das respostas vinha à luz, invariavelmente, sempre o mesmo diagnóstico: - Então, enredou o cabelo... E, assim, não havia surpresa nenhuma quando um gozador saía com uma sugestão de colocar um pouco de glostora, de óleo de mocotó ou da seiva fervida de babosa, para ver se a máquina desempacava. O relojoeiro ficava amuado, mas não repugnava o ministério se atirando com suas ferramentas ao conserto da máquina. Fuçando daqui e dali, fosse ou não fosse o cabelo, cada vez que um relógio botava para funcionar o cliente saía elogiando, cada vez mais aumentando a fama profissional do Seu Alcidezinho. Mas, deixa, que certa feita, a compostura de relógios andou por baixo e o nosso amigo teve que inventar um bico para sair da situação. Deu-lhe na telha, pois, de fazer baile de campanha. Tudo num belo salão de leiva que construiu para tal fim, lá no Passo do Simão, bem ali na entrada do Corredor da Dona Bibica, meio de esguelha com a venda do Telista. Num dos bailes, lá pelas tantas da madrugada, com o lampeãozinho Colemann afiadíssimo, como ele mesmo dizia, depois de um check up, e os pares levantando a poeira do chão batido, ele notou que uma rapaziada dali mesmo do Passo fazia algazarra em tom de deboche. Não deu outra. Irritado, pede para o Planchão parar a gaita de botão em que fazia dupla com o Bernardo ao violão. Pôs bem no centro do salão uma barrica de rapadura que ganhara na venda do Miguel Aliodes, subiu nela e começou um interminável discurso em que descascarreava os moços inconvenientes. Súbito, o Nenê do Abílio, de conversa com o Volmer, debochando do chazinho, deu uma gaitada, a todo pulmão, que ressoou pelo salão. Foi a deixa para que do discurso em que falava no benefício que o divertimento de um baile fazia aos pobres, o Seu Alcidezinho se enfurecesse soltando impropérios ainda hoje impublicáveis. Foi tamanha a virulência do discurso e os pulos que ele dava que a barrica acabou desfundando. Baixinho do jeito que ele era só ficara aparecendo seu corpo dos ombros para cima. Na ridícula posição em que foi parar, tendo as pernas e braços imobilizados, de dentro da barrica lançava aos circunstantes um olhar de súplica por socorro. Em sua ajuda uma boa alma teve a idéia de virar a barrica. Deu certo. Ele se safou rastejando, fazendo senha e gritando para os músicos: Dê-lhe uma valsa. Aquela do Pedro Raimundo... Depois, ante as perguntas que lhe faziam sobre o incidente do baile - cumprindo um destino inexorável - ele acomodava a resposta: - Aquele baile não foi nada disso. Ele tava que era um relógio, com o cabelo bem azeitadinho...

Doutores

Determinadas expressões que foram corriqueiras num passado não muito distante, ditas hoje, decerto, nos causariam estranheza. Também determinadas palavras fazem parte deste rol de coisas fora de uso. Estão aí, por exemplo, fazer nome ou, mais propriamente, nome feio. Outra, fazer arte. Como se dizia, mesmo? Que guri arteiro... Isto sem se estender muito e ficar apenas nas expressões. E as palavras? Mambira, mascamba, boko moko... A primeira nos remete para os tempos em que nos desfiles de Sete de Setembro apareciam na cidade os nossos conterrâneos da campanha. Quem diz que a blusa daquela mulher combinava com o vestido? Aquele verde estranho misturado com um amarelo berrante, justamente defronte o Altar da Pátria... Como ela é mambira! E a calça de correr pinto em banhado que aquele lá está usando, que despautério... E aquele de botas e bombachas que desceu do ônibus? Como é esquisito. Como é mascamba! Como é boko moko o fulano usando aquela volta ao mundo cor-de-rosa (não existia a expressão pink para essa cor) com uma calça de tergal boca-de-sino... Tudo com direito ao espelhinho, ovaladinho com moldura de plástico verde musgo, e o pente da marca Flamengo no bolso transparente da camisa. Gasosa e espírito, então, estas chegam a doer. Era assim que nossos avós chamavam ao refrigerante, perdão, o refri e o álcool. E quando um guri se entonava? Lá vinha a taxação: Como tá doutor! Pois, certa ocasião, o Seu Donor, passando por uns probleminhas de reumatismo, procurou o consultório do Doutor Dionísio atrás duma poção, daquelas da Pharmácia Maciel. Esperando ser atendido ele, vigilante, cuidava a carroça que estacionara no fio da calçada. Justo quando o médico abriu a porta para atendê-lo o cavalo, embora maneado, inquieto, teve de ser cabresteado numa árvore do outro lado da rua, na calçada do Mojinho. De lá o Seu Donor voltou renegando com o animal, já quase entrando no consultório, dizendo: Que alimal que tá doutor... Foi o que bastou! Não chegou a consultar dada a reação do Doutor Dionísio: Olha, ô Donor, vai consultar então com o teu cavalo. E deus as costas...

Redação

Naqueles idos dos anos cinqüenta, do século passado, a nossa Estação Rodoviária estava estabelecida na Avenida Visconde de Mauá. Na esquina onde, até pouco tempo, foi a Livraria da Gia. O concessionário era o Seu Hermógenes, avô do Plínio e o agente o Seu Chico Balbi, pai do Dilermando. Os ônibus tinham como itinerário, quando vinham de Pelotas, em direção a Jaguarão, a estrada que passa pelo Parque Guilhermino Dutra e dobravam numa estradinha que passava onde hoje está a Capela da Santa Casa. Daí, pela Dr. Monteiro até dobrarem na altura onde hoje se encontra a nossa primeira (e única) sinaleira. Uma das empresas se chamava Delgado e a outra a Frederes. A primeira, depois, foi trocada, se não me falha a memória, pela atual Rainha, à época com o nome de Princesa. A Frederes tinha umas limusines, uns baratões, as vans de hoje. A Rainha, de então, teve como motorista, e depois fiscal, o Seu Indalécio. Como eram raros os táxis, ou carros de praça, como eram chamados, havia vários maleiros. Também, não sei se eram poucos os táxis, ou se eram muitas as malas. Mas, para nós, guris, valia a pena ver o Seu Agapito com seu carrinho de mão, o João Barbela com a sua carrocinha e o Alvim Caminhão no muque, mesmo, carregando as bagagens. As partidas para Jaguarão tinham como saída a Rua da Igreja, descendo até a Sanga do Cilinho para alcançar a nossa velha Ponte (que os caminhões de grande calado estão destruindo). Caramba! Por que esta crônica se arrasta, assim, tão preguiçosa e tão parecida com aquelas composições de terceira série primária? Puro rodeio. Rodeio para contar que foi por essa época que a Onila (o nome é fictício, mas é muito parecido) inventou um tratamento médico na vizinha Jaguarão. Dia sim, dia não, lá estava ela, na porta da Estação, aflita, olhando em direção à sinaleira que ainda não existia, esperando o ônibus do Seu Indalécio, já fiscal, dobrar na esquina. Mais esperando o fiscal do que o veículo, diziam. E, se não há exagero na história, contam, um dia, a Onila, toda pintada, empoada, oxigenada e em cima dum sapato de salto dez, pronta para por o pé no estribo e entrar no ônibus, com a passagem na mão, em súplica sincera, pede: - Andalécio, por favor, me bota na frente... O motorista deste ônibus faz dias que me põe atrás eu já ando toda doída. Levou. Si non é vero...

Meus Tipos

Diomésia. Tinha, também, o apelido de Biruta. Figurinha miúda, tronco magro, pernas cambotas e cabelos brancos à moda sura, com se fosse um menino. Nariz helênico, levemente apapagaiado. Olhos baços, cinzentos, a noticiarem que eles foram verdes na sua juventude. Na boca pequena nunca ninguém viu uma nesga de sorriso. Nunca ria. Parecia estar sempre de mal com a vida, embora seu olhar denunciasse o contrário. Nenhum adereço a enfeitar seu manequim. Nada nos cabelos, no pescoço, nos pulsos, nos dedos... Compartilhou um terreno com o Guanaco, como era chamado o Adeodato Velho, naquela esquina onde o Doutor Roquete veio a construir sua casa. Figura pitoresca que, para sua perambulação diária pelas ruas da cidade, usava vestidos de cor verde. Viveu sem ter sido jamais vista com outro tipo de roupa ou outra cor que não fosse essa. Usava uns sapatinhos maria-mole - pintados de verde - em combinação com o resto do figurino. Vivia de donativos. Em uma época que não havia indigentes, duas ou três casas de famílias abastadas supriam as suas necessidades. Raramente carregava alguma coisa nas mãos que não fosse a sua niqueleira. Só com a chegada da velhice foi que se apoiou em um pequeno cajado. Já então não saía mais de casa. A Diomésia era um dos passatempos da garotada. Inticávamos com ela que, braba, muitas vezes investia com pedras contra a zombaria. Os adultos também se aproveitavam para tirar uma casquinha quando a chamavam de Biruta e implicavam com a altura dela, com a cor das suas vestes, dizendo que estava parecida com uma caturrita. Davam-lhe namorados. O chiste não lhe agradava como não agradava nenhum dos consortes que sugeriam para lhe fazer par: Era o Maneca Louco, o Caminhão, o João Barbela, o Cotó... Aí, sim, ela entristecia. Ficava amuada, com um filete de ruga, de cada lado da boca, descendo pelo queixo cheio de fiozinhos brancos. Não lembro qual reação tomava quando contrariada pelos mais velhos, mas, seguramente, não lhe acudia a mesma fúria que usava contra nós, os moleques. Deixou-nos ainda na década de sessenta. Partiu vestida de verde, evidentemente.

Borracheira

Tempos atrás, quando a nossa Arroio Grande era bem menor, o lixo era retirado das ruas por carroças puxadas a burros. Para este trabalho a Prefeitura mantinha os animais tratados e alimentados pelos próprios funcionários lixeiros, dos quais, hoje, lembro a figura miúda do seu Loretinho. Invariavelmente, mal iniciada a coleta, o veículo do Seu Loretinho, que era muito pequeno, enchia e logo tinha de ser descarregado num aterro, perto do arroio, lá para os lados do Perau. Certo dia, quando a Dona Isabel Dutra fazia limpeza no pátio do seu Sobradão, não querendo esperar pela carrocinha do lixo, contratou o Feliz Peru, pessoa pitoresca da cidade, para puxar os entulhos num carro-de-mão. Quando o carrinho fazia ainda a primeira carga e o Feliz Peru estava prontinho para partir, a Dona Isabel pediu que ele desse uma acomodada na carga, para esvaziar um vidro com butiás, usados num curtido com canha. Ajeitada a carga, com os butiás bem em cima, o Feliz tomou o rumo do arroio. Já ao dobrar a rua ele passou a mão num dos butiás, deu uma mastigada e gostou. Gostou tanto, tanto, que butiá após butiá, tocou com o carrinho rumo a sua casa, destino bem distinto do lixão, onde deveria descarregar o entulho. Morava naqueles umbus grandes que existem até hoje na entrada da Ponte Velha. Chegando em casa, no seu peculiar caminhar de dez pras duas, nem deu assunto para os de casa, só encostou o carrinho numa raiz de umbu. As Peruas, como também eram chamadas as suas duas irmãs, donas-de-casa, assistiram à chegada do irmão e ficaram esperando no que ia dar, acostumadas que estavam com as cenas que ele patrocinava, permeando biscates com trago de caninha. Mas, vai daí, a limpeza no pátio aumentava o entulho e o Feliz Peru que havia feito apenas uma carga não voltava com o carrinho. Saíram à procura. Primeiro no arroio das mulheres, depois no Perau, onde a Prefeitura fazia aterro. Nada de Feliz, nada de carro-de-mão. Até que tiveram a idéia de ir onde ele morava. Foi tiro dado, jacu deitado. Entre as altas raízes dum dos umbus, com o carrinho cheio de lixo, ainda, e rodeado de carocinhos de butiás descarnados, dormia em plácida borracheira o Feliz Peru. Dormia como guri pequeno.

sábado, 26 de abril de 2008

O Cantor

O Festival de Calouros que relembro aconteceu na Praça da Matriz, no início dos anos setenta, defronte ao Prédio da Biblioteca Pública. Muitos festivais e muitíssimos cantores se apresentaram para revelar talentos que se tornaram conhecidos na cidade. Um destes artistas, que foi famoso nestas paragens, tinha o nome de Atanásio. Atanásio Gantes, “El Gantecito”, como era apresentado, quando subia ao palco. Teria, naquela época em que procurava mostrar suas qualidades, a provecta idade de setenta anos, para mais. Na sua simploriedade apresentava velhas canções conhecidas com letra de sua autoria. Ingênuo, pobre de espírito, pensava receber aplausos enquanto as vaias e a gozação campeavam frouxas a cada música apresentada. Não havia, de verdade, naquilo que cantava uma nota musical que casasse com a outra, nada de tons, nada de melodia ou ritmo. Até no nome das canções havia aquele delírio que só a demência justificava: A Dama de Vermelho era a principal e as variantes traziam os nomes de Dama de Preto, Dama de Branco, Dama de Azul que se sucedia em damas nomeadas com as cores do arco-íris, todinhas. Nada ele trocava senão a cor da dama. Outra música que ele cantava sempre era uma marcha-rancho furtada ao Bloco Girafa da Cerquinha, de Pelotas. Quando ele dizia que a girafa estava maluca, a expressão ta maluca, ta maluca, ta maluca, se espichava por mais de trinta vezes, tudo em meio ao riso da platéia (aqui a expressão platéia é grifada em itálico por que ninguém de fundamento, mas ninguém, mesmo, assistia ao festival; puro eles os que se prestavam para aplaudir, sem pena, os deficientes se expondo ao ridículo). Neste festival o Atanásio se apresentou com uma roupa à altura do seu talento, confeccionada especialmente para a ocasião. Eles, os bandidos, compraram alguns metros de tecido astrakan, cor-de-rosa, na recém inaugurada Loja do Balaco. Perdeu-se no tempo o nome da profissional que costurou, com um tecido daquela cor, um casaco e uma calça de pernas boca-de-sino. O pobrezinho, no palco, sob a iluminação, não tinha diferença nenhuma da ave aquática chamada de colhereiro. Passado o evento o nosso cantor, aos fins-de-semana, continuava a desfilar com a roupa de artista e a faixa à espera de uma oportunidade para cantar. À espera de um próximo festival. E, quando chegava a época deles, dá-lhe desafios, dá-lhe indagação pelas novas composições que eram sempre as mesmas e dá-lhe treinos do gogó pelos bares e esquinas. Seu Atanásio tinha uma olaria, lá para as bandas do ora Bairro Promorar. Velho, ainda trabalhava na faina de fazer tijolos. Sua família resgatou-o do abandono no fim da década e levou-o para morar na Capital. Nunca mais fizeram festivais de calouros com a excelência dos que ele participava. Nos festivais pontificaram outros talentos, muitos outros, mas, a faixa de melhor, tiveram eles paciência, sempre foi parar no peito do Atanásio. Eu, hein?

Porco Preto


Esta história é do tempo em que o Posto de Saúde estava estabelecido onde hoje é a Ótica Karisma. O Fiscal de Saúde era o Seu Dega Goz. Diariamente ele ia ao Matadouro para carimbar a carne. O abate era feito no Matadouro do Tuca, lá para os lados da antiga Cooperativa. Mais precisamente na propriedade do Seu Abílio, onde existem, ainda, as raízes dos velhos umbuzeiros. Carneavam-se os animais e os miúdos eram dados para quem tivesse a paciência de ir lá pegá-los. Uma pessoa que sempre ganhava as fressuras, às vezes um mondongo, outras as patas era a Dona Sarinha, viúva cheia de filhos, moradora daquela redondeza, mãe do Cisco. Para tanto, ela destacava o Cisco para o Matadouro e de lá ele voltava sempre com algum presente para garantir o rango da família. Numa feita, carneava-se um enorme boi – enorme para mim que era pequeno? – e o Cisco impaciente à espera dos miúdos incomodava os trabalhos. O Seu Dega, esperando o fim de tudo para depois colocar o carimbo, assistia a faina e o incômodo que o Cisco causava na volta dos carneadores. O Tuca, paciente, já havia pedido para ele se afastar para a sombra das árvores. Mas, ele, mesmo assim, continuava incomodando. O Seu Dega, que não estava gostando nadinha da novela que o moleque patrocinava, perdeu a calma. Foi ríspido quando se dirigiu ao Cisco: Para de incomodar, guri. Tu até pareces filho daquele porco preto do Tuca. E apontou para o enorme porco que, se chegando, também, com o cheiro do sangue, fuçava não muito distante deles. Foi dizer e o guri deitou o cabelo em direção a sua casa, choramingando, por terem ralhado com ele. Ora, naqueles idos, em que não existia a Avenida Maria Pereira das Neves, havia um corredor que da cidade ia em direção ao Porto. Era a estradinha do Porto, como a chamávamos, único acesso da cidade à chácara do Tuca. E, neste caminho, com frente para o norte, a casinha da Dona Sarinha que esperava, com as mãos na cintura, pela passagem do Seu Dega, tudo para tirar uma satisfação. Dito, ela ataca o Fiscal e exige dele uma retratação: De onde ele tiraria provas de que o Cisco era filho do Porco Preto do Tuca. E cheia de razão, insistia: aprova, aprova que eu não sou uma viúva decente, falador. O Seu Dega ficou mudo sem conseguir consertar a ralhação que fizera. O Cisco, escondido, sem ter trazido nenhum miúdo para a bóia, só ouvia a lenga-lenga. Depois, na escola, por certo tempo, tentamos brincar com o Cisco. A Dona Sarinha veio até o Vinte e botou bronca. A coisa ficou meio esquecida. Meio, claro, por que sempre que tenho oportunidade pergunto a ele sobre o porco preto... Bem baixinho pra ninguém ouvir...

Presentes

Não foi só uma vez, nem duas, que o Adão Bidiva ganhou de presente as cabeças de vaca do Seu Lindinho. Sempre que carneavam lá na estância vinha de presente para o Adão a cabeça do animal. Era, então, que ele preparava o braseiro do fogão para usar o forno. Manhã inteira, desde cedo, e a cabeça se aprontando para o final e delicioso deleite. Vai daí, que o importante nesta história é contar, também, os muitos ressentimentos que o presente, embora bem vindo, sempre trazia ao Adão. Assim, isto ocorreu por anos a fio, a cabeça de vaca era entregue sempre pelo Elsi, o capataz, que vinha lá de fora para a cidade especialmente para este fim. Mas - tinha que haver um mas -, o presente chegava sem a língua que, todo mundo sabe, é uma iguaria. Esta, de certeza ficava pelo caminho, fosse por que o doador a aproveitava, fosse por obra do capataz surrupiada em meio ao destino. Mas, como pra burro dado não se olha o pelo, cabeça após cabeça, iam sendo assadas sem a língua, mesmo. Afinal, se aproveitavam outras partes, etecetera e tal e a coisa fluía na sua normalidade. Não se tocava no assunto, e fim. Porém, um dia, o capataz chegou à cidade e, antes da entrega, tendo um contratempo, pediu a um peão que o acompanhava para fazer a entrega do presente mandado pelo Seu Lindinho. O peão, para tirar a sua casquinha resolve, antes de entregar a cabeça ao Adão, tirar também os miolos. Desta feita que contamos, o Adão Bidiva, sentindo que a coisa tinha passado da conta e chegado a um limite insustentável, se emborcou: Podiam levar de volta que assim como o presente vinha ele não mais o queria. Pois, a partir da estrilada do Adão o presente passou a chegar inteirinho, inteirinho, com língua e tudo. Uma verdadeira maravilha. Até hoje, se era obra do doador originário, ou do capataz, ninguém ficou sabendo, mas, como o Adão contava, as queixadas passaram a ser apenas lucro. Puro lucro.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O Enfarte

Domingo de verão. Cancha dos Bonneau. Década de 50. Desde cedo da manhã a Verruga, camioneta do João Rodrigues, fazendo corridas, carregando gente até a cancha. Desafios de mais de dois meses com arremates no Café do João Ticató, na tarde do Sábado. O cavalo do Xandoca tinha o nome de Apache, viera do Povo Novo e correria com o Baio do Aquilino. Antes do pleito principal os outros arremates. A última, a carreira grande, fugindo ao costume de correr às duas da tarde, estava marcada para as seis horas, bem antes de o sol entrar, com desempate combinado para a manhã do dia seguinte, o que aumentaria as expectativas e as apostas. O churrasco, naqueles bons tempos, com tudo patrocinado pelos desafiantes, tinha como acompanhamento uma salada campeira e cerveja, que vinha gelada da cidade, em desabaladas correrias, num fordeco Modelo A, com carroceria, do Lauro Hernandez. No local havia uma carpa que o João do Cantalício montara em sociedade com o Papaco onde vendia gasosa e uma caninha que fazia sucesso na época e era chamada de Atitude. O dia corria bonito, como nunca - dentro da carpa, o truco; fora, o jogo do osso, rolando solto, à sombra dos eucaliptos - quando, quase ao meio-dia, ouviu-se aquela gritaria, lá para os lados da carpa. Corre daqui, corre dali, alguém estava passando mal e já providenciavam socorro. Deveras, o Constantino, que fizera lastro para o churrasco, alternando rodelas de lingüiça com caninha, se engraxara cedo e jazia deitado num banco, com os olhos esbugalhados, espumando pela boca, irreconhecível, numa ronqueira que inspirava cuidados. Esperava traslado para a Santa Casa. Parecia enfarte, derrame, decerto algo grave, devido às evidências... Lá chegado o doente, bem examinado pelo estetoscópio, mais o exame rigoroso de pálpebras, veio à luz, num ataque de riso do Doutor Dionísio, o diagnóstico: Borracheira!!!... O Constantino, depois de chamar o hugo, tinha juntado do chão a dentadura e a colocara invertida. Foi só destrocar a prótese inferior pela superior e ele melhorou na hora. Passada a broma, o único prejuízo foi não ver o Baio do Aquilino perder mais uma das carreiras em que foi assinado...

Encrenca


O Cabeça, açougueiro, cortava carne com precisão no peso. Um quilo, e ele, na batata, largava o corte em cima da balança, sem erro de grama. Dificilmente não acertava. A não ser que se lançasse um repto duvidando da maestria dele. Aí, sim, ele embravecia e o corte não dava mesmo o quilo certo. Poucos se animavam a toureá-lo quando atendia na venda da carne. De certeza, provocado, pedia briga. Um dia, o Otacílio da Currucha foi comprar guisado e, já da porta do açougue, mal entrando, com cara de deboche, cutuca a onça com a vara curta: - Me dá um quilo de guisado, e vê se hoje não erras no peso... O Cabeça, imperturbável, sem dar a mínima atenção ao pedido, passa a mão na chaira, senta o fio da faca e começa a falquejar a maior costela que estava em cima da banca. Depois de descarnado e limpo o osso, sem largá-lo, faz a volta no balcão e acerta com ele uma paulada na cabeça do Otacílio. Depois, várias, pelo lombo, por onde caísse, até ele fugir, todo lanhado, disparando rua afora. Podendo silenciar sobre a sova, e ir para casa, o Otacílio preferiu dar com os costados na delegacia de polícia, todo queixoso e doído. O delegado de então, o Seu Orocil, em virtude da infração penal, lavra uma notificação chamando o agressor para prestar esclarecimentos. Comparecendo, o Cabeça não negou as pauladas. Mais deixou claro que repetiria a dose se o Otacílio voltasse a provocar. Criado o impasse, e não querendo o Delegado abrir inquérito – sabe como é? Cidade pequena, tudo amigo... -, tentou uma jogada de malandro: Chamou à Delegacia, então, o ofendido. Com o lombo ainda inchado, como soía, ele volta, ansioso por novidade contra seu desafeto. Mal adentra ao cartório, já foi o Delegado dizendo: Que papelão me fazes, Otacílio! Chamei o Cabeça aqui e ele me garantiu que foste tu quem bateu nele, que ele foi a vítima, tudo diferente do que declaraste. Explica isso, vamos! Ao que o Otacílio, com ar de valentão, enchendo o peito, e aceitando a bomba, replicou: Ah, dei! Dei e tá bem dado... E podes me processar!...

O Profissional

O Alcidezinho, que sempre tivera a profissão de serviços gerais, sem nunca deixar de sonhar com uma profissão especializada, um dia, com um enorme esforço, buscado no recôndito da sua inteligência, aliado ao esperto Instituto Universal, formou-se na profissão de relojoeiro. Bacharelado, ele expõe o diploma, por várias semanas na vitrine da Casa Americana, do Rocco. Daí, ao sucesso, foi um pequeno passo onde nunca faltaram exibições profissionais. Uma delas, que foi muito comentada, a invenção de um sistema para uso na bicicleta. Consistia num relógio despertador que, fixado ao guidão, sonava a campainha toda vez que ele brecava o veículo numa esquina. Outra, era um relógio que não tinha o ponteiro dos minutos e o mostrador era todo dividido, de dez em dez minutos, através de tracinhos entre as horas. No entanto, embora já um profissional respeitado em conserto de relógios, alguns dos antigos compromissos, com os antigos clientes, ele não abandonara. Anualmente, perto da primavera, ele fazia uma limpeza geral no jardim da Dona Zaida Albuquerque. Era sagrado o compromisso. Chegado o finzinho do agosto lá se apresentava, com a enxada, o ancinho, vassoura, pazinha do lixo e o carrinho-de-mão. Levava, ainda, um cartaz em que estava escrito: “Eu continuo relojoeiro” que fixava num canteiro, para evitar a brincadeira dos moleques grandes, que viviam perguntando: “Ué, Seu Alcidezinho, mudou de profissão?”. Religiosamente, finda a limpeza do jardim, retirava o cartaz, juntava as tralhas e voltava para a sua relojoaria. Depois, só se houvesse enchente no arroio é que dava uma descansada, com o conserto de relógios. Tudo por que as águas, que não avisavam quando vinham sempre invadiam sua casa. O contratempo, que o obrigava a retirar toda a família da casa, não o removia de perto de sua ferramenta a qual mantinha dentro da casa, enquanto as águas da enchente não baixassem. Sucedia nessas ocasiões, ele cozinhar com água pelo meio do fogão, sempre agüentando firme, não arredando o pé da casa, dos relógios, das suas ferramentas. Quantas vezes o Alcidezinho perdeu o humor com os curiosos que iam até a beira do arroio para ver a altura das águas... Quantas vezes? Também, quem ia aturar os gozadores perguntando para ele, que estava no telhado da casa, depois do almoço, com o cano do fogão fumegando: “- E aí, Seu Alcidezinho, quando é que parte o vapor???” Era demais, era demasiado cruel e ele xingava. Com razão ele enchia o peito e xingava, com sua voz fanhosa, mandando a todos que fossem para a praia que os pariu!!!.

Sputnik


No finzinho da década de cinqüenta reinavam no nosso mundo turfístico, como melhores parelheiros, os cavalos Foguinho, tostado, do Seu Jacinto e o Suez, um malacara do Aldirinho da Minda. Os outros, eram os outros... Estes, não... Estes davam sota e basto e, quando corriam, muita luz nos adversários. Foi nesse tempo que o Herculano inventa de se associar com o João e o Manoel Rodrigues, na compra de um cavalo zaino, lá do Povo Novo, rebatizado de Sputnik, tudo num bem engendrado plano para dar fim ao favoritismo dos dois melhores que havia nas canchas, até então. Tratadores a postos, controle de peso dos jóqueis, tudo nos conformes, acertaram uma penca na cancha reta da granja do Seu Joaquim, lá nas Capoeiras. Deixa estar, que os proprietários do Sputnik, contrataram como jóquei para a esperada corrida, o Luis da Filhota, daqui da cidade - mas operando com um sucesso enorme nas canchas de Jaguarão e Rio Branco, já há um rol de anos - tido como um dos melhores da região. Como nestas bandas não vigora o costume de realizar a corrida grande às duas horas, e em sendo primavera, à época do desafio, com dia ainda curto, a largada se daria lá pelas quatro, quatro e pouco do relógio. Pois, o trio de proprietários, encabeçado pelo Herculano, resolve dar um doping no zaino, horas antes, para garantir vitória. Vindo de Pelotas, o Major, um alarifaço que sempre andava por estas canchas, estuda o animal e as reações da picada que levara. A achando que ele assimilara bem a dose, resolve dar outra injeção. Deixá-lo pronto para enfrentar a reta dos trezentos metros. Já no partidor, foi uma luta a largada, dada a inquietação do Sputnik para se parar na caixa e, subida a fita, já na arrancada, ele destrilhou, cego, cego, em direção a uma corticeira que havia hás uns cinqüenta metros, para o lado da pista, se pranchando no segundo andar dos galhos da árvore. E lá ficou. De cima do cavalo, tiraram o Luis da Filhota, de olhos fechados e enroscado como mulita quando se defende do perigo. No desfecho, o jóquei foi levado para a Santa Casa e atendido pelo Dr. Karan. Esquecidos do destino do Foguinho e do Suez, os donos do Sputnik, dada a broma, caminhavam nervosos pelo corredor do hospital à espera de uma boa notícia, já que tudo poderia redundar numa vítima na pessoa do jóquei. Foi quando, aberta a porta do ambulatório pelo Irineu enfermeiro, o Herculano pergunta: - Como ele tá? Tá bem o Luis? Óia, diz o Irineu, o susto passou com o calmante que o doutor deu. Já está desenroladinho e teso em cima da maca, mas não entrem agora que vocês vão se arrepender... Tá um cheiro... Tá horrívi lá dentro...

Meus Tipos


Dia desses um incauto apareceu no Armazém Pingüim à procura de isca para isqueiro. Atendido pelo Darci do Lino, um dos proprietários da casa, com toda a delicadeza que um bom caixeiro deve aos fregueses, foi informado que, no momento, estavam em falta do artigo procurado. Mas, que, seguramente, na Ferragem Vianna, ou na Ferragem do Dallarosa ele encontraria iscas. Para ir nesta primeira casa informada, da esquina do armazém, apontando o dedo, com o braço estendido, para o prolongamento da Rua Gumercindo Saraiva, o Darci deu as coordenadas ao freguês: - O senhor só vai dobrar esquina uma vez, preste bem atenção: Vá sempre pela calçada do outro lado, passe o Cabaré da Dona Cizica que fica na outra quadra, depois, andando mais outra quadra, já naquela outra esquina, passe o peixe do Pedro Calaveira e atravesse a rua; siga, passe pelo Bar da Colota e vá até a esquina da venda do Olegarinho. Aí, sim, dobre e vá até a quadra do Grupo Escolar “20 de Setembro” - atravesse a rua em diagonal e, antes, chegue à venda do Paulinho de Quadro, aproveite para tomar uma gasosa Guaraci, ou uma “17”, bem fresquinha, para espantar o calor. Depois, sempre reto, vá até a casa do Graúdo, bem defronte à Casa Yolanda do Seu Moisés, e estará frente à ferragem. Ah! se o senhor for atendido pelo João Gago, diga que foi o Felipe do Seu Oscar, um amigo dele, que o encaminhou... Para ir à Ferragem Vianna - a alternativa -, ele apontou com a mão na direção da Zeca Maciel, sempre chamando a atenção que só havia uma dobra de rua. Que ele seguisse por essa calçada até a quadra onde está a bomba de gasolina do Seu Lindinho, defronte à Casa Extra do Seu Virgílio, e continuasse até a outra esquina, do Armazém do Aymoré. Então, dobrando, passasse a quadra da Loja A Gloriosa, do José Macksoud e, antes de chegar à Loja A Brasileira, do Castelhano Pablo Marcelino, bem defronte ao Hotel do Branco, está a ferragem (que deveriam vender, e bem baratinho, o que ele procurava). Como era uma tarde de Sábado, se a casa não respeitasse a semana inglesa, ele seria bem atendido pelo Seu Ceci. E que fora informado... A outro freguês, que procurava mecha para lampião a querosene, estando a ferragem em falta, ele informou - fazendo um mapa numa folha de papel de embrulho - que quem vendia uma variedade ímpar de mechas era a casa comercial do Seu Izidro Peres: que ele seguisse por esta rua (a Zeca Maciel), passasse a quadra da Companhia Telefônica, mais a quadra do Ambulatório do Seu Teófilo; depois a quadra do açougue do Cabeça, até chegar à venda do Hernandes, confronte à Pharmácia Maciel. Aí (e olhava para o interlocutor para ver se ele prestava atenção. Prestava...), aí, dobrando para a direita, passando a casa da Adolfina, onde o Edmundo Añaña tem uma loja que vende bicicletas, ele atravessasse a rua e andasse até chegar num campinho onde está armado, neste mês de fevereiro, até o carnaval, o Circo do Chimbica, bem confronte ao Consultório do Doutor Karam... É ali. Dá pra aturar? Dá?...

Leão da Vila Foot-ball Club

No Princípio era o Verbo…? Não, não. Antes, eram os bailes do Celedino, pai da Carola e os da Dona Chiquinha, mãe do Julinho do Pedetê. Local dos bailes? Vila São Gabriel, à época em que ela só tinha um corredor que atualmente é a Rua Borges de Medeiros, bem mais alargada. O acesso se dava pela estrada do Porto, hoje engolida pela Avenida Maria Pereira das Neves. Sempre às tardes de domingo. Tinham, em ambos os bailes, lá pelo meio da tarde, as polcas da vassoura e a do verso. Naquela, o dono, com uma vassoura na mão, virada o cabo para baixo, batia-a no chão de terra batida do salão. Quando parava era a hora dos pares se trocarem. Admirável a ingenuidade dos moços de então (à vista dos de hoje éramos uns abombados)... Mesmo assim, já na chegada ao recinto, dávamos um jeito de ver onde estava colocada a vassoura. A partir daí cuidávamos o momento em que ela era buscada e nos posicionávamos perto das moças desejadas, e bem escolhidas previamente. O moço do par que se atrasasse levava a multa de não dançar as próximas três marcas. Tempo suficiente para roubar-lhe o par até o fim da brincadeira, sem dar chances (as feias que nos perdoassem, mas não iríamos nunca, nem mortos, juntar a fome com a necessidade de comer). Na outra modalidade de polca havia um outro tipo de castigo aos moços: faziam-se e refaziam-se os pares, e sempre restando um moço que deveria por multa dizer uma trova, a cada marca, para pegar, então, a moça que sobraria. Nesta troca, para dizer o versinho, procurávamos nos posicionar, também, perto da mais linda. Tudo muito bem decoradinho. Foi num destes bailes da Dona Chiquinha, com o piso já pedindo uma aguinha para baixar o pó entranhado nas narinas, com quase todos os pares consolidados, que o Tité, dançando já meio cansado da moça que escolhera, para poder dizer um verso debochado, inventou de sobrar. Num canto do salão o Alcides Furão, que nunca dançava, quieto, como era o seu jeito, a tudo assistia atentamente. Ele era presidente, tesoureiro, massagista, guarda-esporte e dono da sede do famoso time de futebol Leão da Vila, primeiro time de subúrbio da cidade (o técnico era o Julinho do Pedetê). Tinha o apelido de Furão, por conta de seu nariz adunco, o que deu mote para a glosa lascada pelo Tité: “Alecrim da beira d’água/não se cria de raiz/nunca vi moço bonito/com três palmos de nariz...”. Não prestou. A carapuça já existia há séculos e o Alcides não se fez de rogado. Vestiu-a. Num agarra daqui, agarra dali, terminou o baile e o baile ía em direção à casa do Castelhano Pereira, com a coisa osca para o lado do versejador. Foi com a turma do deixa disso agarrando o ofendido, que pedia briga, e numa saída parecida com a do Camerini tirando o band-aid que pusera na cara do Doca, que o Tité, também ainda agarrado, berrava sentenciando o Furão: Não jogo mais no teu time... Tu não sabes brincar... Não jogo mais no Leão da Vila!

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Meus Tipos


O Cubatão e o Santo eram grandes companheiros de pescaria. Nos sábados e feriados, de forma sagrada, o Santo tirava a sua carrocinha do galpão, atrelava a ruaninha, e - pernas pra que te quero - pegavam o rumo da estrada do Porto. Tralhas na carroça, davam uma parada na padaria do Seu Martim, para comprarem o pão e a mortadela, fiambre que era bancado alternadamente. O Cubatão, de compleição baixinha e gordo, sempre sério, ranzinza, como era da sua personalidade, não cumprimentava ninguém e só falava a muito custo. O Santo era mais graxa, não só não se importava com a bílis de ninguém como também dele o azedume passava a léguas. Com todos conversava, ria, cumprimentava, levantando o relho, mostrando os dentes, fazendo os ibarrarrás, naquela sua eterna alegria. Este era para se dizer, sem errar, pessoa de bem com a vida. Aquele meio belicoso com o mundo. Um era, sem sombra de dúvida, e de maneira inexplicável, exatamente o contrário do outro, mas, mesmo assim, eles se entendiam no más, ou, até demais. Um dia, quando a compra do fiambre era por conta do Santo, mal ele desce da carroça, justo saía da padaria a Dona Emília, mãe do Bidiva, que lhe cobrou: - Afinal, Santo, e os peixes que tu me prometes, quando chegam? Faz anos, hein? Caçoou. Resposta, gritando para meio mundo ouvir: - É hoje, minha velha... Hoje a senhora ganha um jundiá para o ensopado, e, se enquadrando, uma traírinha pra fritar... Hoje a lua tá boa e misturada com a mão e a sorte do Cubatão... Disse, olhou para o companheiro, entrou na padaria, comprou os pães, e, surpresa! Quando voltou para a carrocinha, cadê o Cubatão? Olhou para o lado e viu o companheiro, já longe, voltando para casa com caniços, lampião e o resto dos avios. Deu cara-volta e alcançou-o, perguntando: - Que bicho te mordeu, homi de Deus? O Cubatão, casmurriento, sem diminuir o passo, devolveu: - Ué!, nós nem cheguemo a sair pra pescaria e tu já tás dando os peixes!!! Cansei!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A Vila da Palha


A Vila se estendia por toda aquela suave curva que nasce nas Três Marias e tem seu fim na Chácara do Aquilino. Por que da Palha? A explicação mais lógica seria pelo arranchamento que existia, com casas de barro e santa fé, desde onde nascia a hoje Avenida da Saudade e, encordoado como contas de um rosário, terminava lá no alto. O casario era por um lado só de calçada e tal se explica pelo fato de pertencerem à chácara do Aquilino as terras do outro lado da rua e ele nunca ter cedido ou vendido terrenos da sua propriedade. Desse lado, apenas a casa do Seu Pipi, O Aguateiro. Mais nada. Pelo lado dos arranchamentos, o primeiro bar naquela rua, hoje avenida, foi o do Nestor Crochi, numa casa de material, destoante dos ranchos. Na encruzilhada, onde hoje ensaia uma escola de samba, se localizava o rancho do Dininho Sete Quadras, bem perto da casa do vizinho Ursulino, da casa da Candinha. Foi quando a Vila já estava perdendo o seu pitoresco nome que nasceu, bem no alto, o famoso Cabaré da Teixeirinha, também conhecido, por um largo período, como Planeta dos Macacos. Na Palha, com suas três estrelinhas esculpidas na fachada, o primeiro armazém naquela zona, de propriedade do Seu Pompílio. Também tiveram certa fama, quando as casas de alvenaria começaram a descaracterizar a Vila, a Churrascaria Cavalo de Aço, do Felipe e o inesquecível Bar da Noca. Pois, foram ali, nas Três Marias, os melhores comícios que a população assistiu. Isto, enquanto a zona foi considerada o finzinho da cidade. Foi num comício ali na Vila da Palha que o Pedro Bitencourt fez reviver, referindo-se a um adversário medalhão da política local, que assistia aos discursos, a expressiva frase: É contigo mesmo, calça floreada. Neste mesmo comício, em que o Pedro estava com toda a corda, ele dizia três ou quatro palavras e o Cabana e o Aloi, que eram adversários, só para esculachar o discurso, lá das beiradas, gritavam: - Olha a Escola Rotary!!! Olha o incêndio da Escola Rotary!!! - alusão que faziam por que o Pedro defendia, à época, os acusados de um incêndio no prédio da escola. O orador, depois de muito escutar, já de saco cheio, pediu aos assistentes do comício que abrissem um caminho que havia adversários com vontade de se manifestar. Foi abrir a passagem e, desde o palanque, surgiram as figuras do Zé do Julião, Chinelo, Timotéo, e outros correligionários... Ai, menina!... Aquela quadra onde está a fruteira da Sirlei ainda era vazia e cercada de arame. Deu prá ver e conhecer os cobras mandadas em ridícula disparada... Noutra feita, ainda naquela zona, o Lauro Cavalheiro, num comício da ARENA, inventou de cumprimentar o Arthur Bachini, à época Deputado estadual pela sigla. Para surpresa, sendo comício de adversários, o Lauro vai até o palanque deles. Quando o Bachini estendeu as mãos para o abraço que imaginava fraternal, o Lauro, mesmo cercado de correligionários do Deputado, deu-lhe uma estrondosa bofetada. Tudo sem explicação nenhuma. Coisas de Política nos inesquecíveis comícios da Vila da Palha.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

"Vila da Palha"


Na próxima edição do Jornal Meridional, histórias da "Vila da Palha", seu moradores, seus tipos e um comício, que virou lenda na cidade.

A propósito, vocês sabem onde fica a "Vila da Palha" aqui em Arroio Grande?

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