Al Di Lá

Você se lembra do filme Candelabro Italiano?

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O latinista (Ad argumentandum tantum)

O Doutor Lauro Medeiros de Albuquerque, advogado, professor, criador, pessoa de proeminência na cidade, era um apaixonado por história e por latim. Dava gosto ouvi-lo quando o tema em aula era a Guerra do Paraguai. Só ele se referia à Batalha de Tuiuti, a mais sangrenta de todas, com tanta vibração, com tanto enlevo nos gestos. Osório, o vencedor de Tuiuti; Caxias, o comandante vencedor das forças brasileiras, em Itororó, Avaí, Lomas Valentinas e Angostura. Vibrava quando se referia aos Voluntários da Pátria, à armada brasileira, às famosas retiradas, aos ataques majestosos do exército imperial. Tudo, na voz desse saudoso professor, mexia com o nosso ufanismo. Só ele esparramava latim com tanta propriedade. A nossa atenção às suas explanações sempre valiam boas notas, muito mais que as sabatinas. Como causídico, também brilhava com seu latim pelos plenários de Júri. Num deles, no Herval, em que abraçava uma tese de legítima defesa, o Doutor Lauro exaltava, em latim, um episódio sobre Assis Brasil, tido em seu tempo como um exímio atirador de arma de fogo: Atacado em campo aberto por um touro, errava os disparos contra o animal. – E olhem que era o Assis Brasil – repetia o orador... O plenário silencioso escutava atento. Atuava na parte contrária o Doutor Cândido Norberto que, em dado momento, lá pelo quinto tiro errado, não se conteve e lascou a pleno pulmão: - Eh! Touro de sorte!... Assim era. Vagam pela nossa lembrança, ainda com o mesmo vigor daqueles tempos ginasianos, as expressões latinas que ele tinha paixão em apresentar com as prontas traduções. Brocardos que ele cultivava, além das suas lides forenses, nas aulas de história, no encontro com amigos. Aforismos que brotavam com naturalidade, com exagero, até. In illo tempore, dizia, quando se referia ao passado. Se alguém o cumprimentasse, quando a caminho do Foro, lá vinha latim: Hoc opus, hic labor est. Frente às situações ou provocação entre estadistas, nas notícias de jornal, nascia um abyssus abyssum invocat... Contava o poeta Lauro Machado, que estando um dia o seu cunhado Mário à porta de casa, ao sol, cumprindo a tarefa de colocar remédio no nariz do Paulinho Carriconde, à época um menino de cinco anos, foi surpreendido pelo cumprimento do Doutor Lauro, que por ali passava: - Bonus pater familiae, que fazes? O Doutor Mário, sem largar o queixo do filho, espremendo o conta-gotas, calmamente respondeu, em bom latim: - Butare remedius nauseans infantibus. Só para argumentar...

O Mediador

O desfecho da briga do Otacílio da Currucha com o Cabeça, na década de cinqüenta, serviu de mote para terminar outra encrenca que aconteceu, muitos anos mais tarde, entre contendores diferentes. O motivo desta desavença foi um comodato de terreno entre o Velho Pereira e a Dona Joana, mãe do Ataíde Pipoqueiro. Quando ela ficou velhinha o filho pipoqueiro resolveu por em dia os teres e haveres da mãe. E, dentre eles, havia uma nesga de terreno que ela cedera ao Seu Pereira, para que o caminhão deste pudesse manobrar melhor ao entrar na garagem. Ora, o Velho, já não tendo mais o caminhão, acreditava que o terreno, que nunca tivera cerca, pela perda da serventia, também estivesse fora de sua posse, sem necessidade de entrega solene. O outro, preocupado com o patrimônio da mãe, acreditava que o Velho ia ficar de dono do terreno. E foi assim, num clima de animosidade por parte do Ataíde, que ele procurou o Velho para por em dia a questão. Com conversa daqui, conversa dali, num rodeio verbal já indo longe, o Ataíde enfim entra no assunto que o Castelhano Pereira já esperava. Não terminou de falar e começou a xingação em portunhol, e dali foi tudo rapidinho para as vias de fato. Depois de dar uns quantos tapas no Ataíde, o Velho se enfureceu e passou a atacá-lo com pedaços de tijolos que havia no aterro da rua. Com um último tijolaço no peito e todo lanhado no rosto o Ataíde Pipoqueiro acabou indo para o plantão da Santa Casa. E foi lá que o Tité, sabedor da briga do pai e preocupado com a confusão que redundaria em processo, foi levar seus cuidados e apoio ao infeliz pipoqueiro. Prontificou-se a acertar despesas com curativo e analgésico tudo para ver se dourava a pílula. Mais, queria levar o ferido para casa poupando-o de uma dolorida caminhada. Desculpava-se pela ação errada que o pai praticara, e, sobretudo, enaltecendo a harmonia que sempre existiu entre vizinhos, aplicou um golpe de misericórdia no Ataíde: Agradecia-o por ele não ter sovado o Pereira, que já era um velho e coisa e tal. Resultado, dando uma bomba dessas no Ataíde, a coisa morreu por ali, sem inquérito, sem polícia, numa boa...

Tio Julio

Tio Júlio, ou Vô Júlio, como o chamava. Na verdade era um tio-avô. Da sua figura o que mais lembro eram os óculos parecidos com os que imortalizaram a figura do John Lennon: lentes redondas e com um aro fininho. Ah! Não esqueci também o permanente uso de colete. Num bolso ele trazia o relógio com a corrente de ouro, presa na casa do botão e, no outro, a faquinha para picar o fumo crioulo. E dá-lhe palheiro! Até hoje, ao lembrar a sua figura bonachona, meus sentidos parecem entrar em contato com o agradável cheiro daquela fumaça e o aroma daquele pito. Era criador e, como paixão maior, gostava de lidar com Frutos do País, como eram chamados os couros e pelegos que ele saía a comprar pelo interior do município. Tinha como ajudante o Cirilo, um dos filhos solteiros que estava sempre à sua volta. Certa feita, quando o Seu Amaro Caetano, também comprador de couros e pelegos, comprou um Modelo A, da Ford, para substituir a carroça, o Vô Júlio observou ao Cirilo, apontando o cano da descarga do automóvel: - Vês, Cirilo, aquela fumacinha? Pois ali vai todo o dinheirinho dele! Mas, uma semana depois da observação, quando pai e filho puseram o faeton na estrada para comprar couros sentiram a dura realidade dos tempos: O Seu Amaro, no guarda-louça, já tinha comprado primeiro tudo que era pelego e couro da campanha, numa passadinha, já que agilizara o modo de negociar. Não deu outra. Foi de imediato que o Vô Júlio mandou o Cirilo para a cidade, com dinheiro no bolso e uma recomendação: - E não volta sem me trazer um automóvel do ano, e faeton, para a gente driblar a concorrência. Comprado o carro os negócios prosperaram, por anos a fio. O Cirilo foi o seu motorista, também, quando adquiriu um moderno caminhão da marca Fargo para continuar envolvido nos negócios de Barraca, como ele dizia. Lembro o dia em que o Cirilo, já madurão de idade, casou. A Cerimônia foi na Igreja. Na hora H chegaram para o casamento os dois, pai e filho, acompanhados do Tio Olívio. Desceram a calçada da Praça e o Vô Júlio, manheiro, ainda deu uma fumada no puxo de palha, antes de amassá-lo na areia da rua. Atravessaram na diagonal e subiram, proseando, os degraus da Igreja. Quando entraram, ai Minina! O Vô Júlio, cara-a-cara com aquela imensidão do templo, admirado, olhando a nave arredondada, lá em cima, não se segurou: Mas, Olívio, que Barraca bem linda dava isso aqui! O que ia caber de couro e pelego... Já viste, tchê?

quinta-feira, 19 de junho de 2008

CAFÉ CAPRI

Anos sessenta. Estávamos reunidos numa mesa ao canto, com o janelão à nossa frente, numa roda de cafezinhos e martelos. À espera, claro, dos bolinhos de carne da Maria da Currucha que o Dé trazia, costumeiramente, ainda bem quentinhos, aos fins da tarde. No balcão não estava nem o Tritri, nem o Aldi para atender-nos. Apenas o proprietário, o Seu Ciro, a olhar para a nossa mesa com um olhar perdido. Nada falava, nem nada perguntava. Nós, também em flirt, nada solicitávamos embora precisássemos de um pequeno abastecimento de água ardente. Foi quando surgiu uma idéia: Vamos fazer um requerimento pedindo mais outro martelinho? E, nele, dando ao Seu Ciro um largo tempo para nos servir? Dito. Feito. Com o escritório bem pertinho do Café, em minutos o documento foi elaborado e protocolado no balcão: Ilmo. Sr. Ciro.... Nós (Sérgio Canhada, Marta Rocha, Renato Müller, e Outros), vimos pelo presente, respeitosamente, perante Vossa Senhoria, requerer, dentro das próximas quarenta e oito horas, se não for incômodo, seja trazido até nossa mesa mais um martelinho. Pedem atendimento, Arroio Grande, etc... À medida que lia o velho foi perdendo a cor e, brabo, deixando o papel em cima do balcão, saiu para os fundos do salão. Para a nossa cabeça estava a porqueira feita... Voltaria armado para uma briga? Era esperar para ver no que daria a picardia. Minutos depois, quando voltou, para a nossa surpresa, trazia um copinho que encheu com a branquinha. Depois, vindo em direção à nossa mesa, antes de colocar o martelinho sobre ela - e olhando, justamente para mim -, lascou: Isso só pode ser coisa tua!... Mais outra doma ali no Café?... Bem, aquela tinha passado! Mas, aconteceram outras passagens, inúmeras... Como a da noite em que tinha baile no Doca e o Aldi estava de atendente. O Macksoud, sabendo que o Arnaldo se dirigia para o Café, sem um tostão no bolso, avisou-nos - os mesmos de sempre -, da molecagem: atara numa nota de dinheiro, à época de importância considerável, um fio de náilon, quase invisível de fininho. Abrira uma fresta nas portas internas do balcão que tinha vidro na sua frente e, dali, observaria a nota de dinheiro no chão de jeito a pescá-la antes de ser agarrada e acabar em prejuízo a brincadeira. Não deu outra. O Pila chega, avista a nota no chão, espertamente segura no osso do peito, e pede um cafezinho. Em seguida, disfarçando ajeitar a meia, faz a primeira tentativa. Dali donde fresteava o desfecho o sacana, vendo a mão do outro aproximar-se da nota, dá uma puxadinha no fio e coloca-a mais para baixo do balcão. Mais um trago no cafezinho e o Pila dá a segunda investida: Disfarça para arrumar a outra meia e passa a mão no chão. De novo, não vem com nada... O bandido, lá do outro lado do balcão, tinha dado mais um puxãozinho para dificultar a manobra. Resultado: Não demorou muito e o coitado, noutra tentativa desesperada, tendo perdido toda a noção do ridículo, estava, de terno e gravata, como viera vestido, deitado no chão, agora, com todo o braço embaixo do balcão, procurando a nota que salvaria o seu baile no Doca. Não lembro quem não agüentou, e riu. Mas, não esqueci a cena. Ofendido, o Arnaldo foi para a porta do Café. De lá, brabo, numa sujeira lamentável, bradava: Aqui não tem homem... Se tiver que saia que ele vai aprender a não fazer gracinhas... Filhos disto, filhos daquilo, e mais uma centena de frases impublicáveis. Saiu alguém? Não saiu ninguém. Que ninguém era bobo, mesmo. Éramos só moleques e tínhamos acertado outra.

MEUS TIPOS (Yo quisiera...)


O Gilberto Alves foi a pessoa mais alegre e brincalhona que conheci. Foi funileiro e latoeiro naqueles tempos em que o plástico ainda não tinha invadido nossas vidas. Canecas, bacias, calhas e uma série de objetos, que hoje encontramos em matéria plástica nas prateleiras das lojas, saíam de suas mãos, em folha de flandres ou zinco, com um perfeccionismo impressionante. O Gilberto era mais conhecido pelo seu apelido de Picão. Sempre tinha uma história engraçada para contar e quando a iniciava, já rindo, preparava a gente para o seu desfecho hilário. Mesmo quando um causo merecia seriedade ele inseria, sério evidentemente, aquela graça que cativava os ouvintes. Figuraça. Nas suas histórias, quando os olhinhos brilhavam, podíamos esperar que vinha chumbo, e do grosso... Foi um dos melhores amigos do Papaco Velho. Juntos aprontaram à vontade e cultivaram a irreverência por esta terra do Irineuzinho. Desses dois, uma das simploriedades que mais apreciávamos era um ajudando o outro a relembrar as comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente o discurso do Seu Miguel Aliodes. Contava o Picão que quando noticiaram a Paz, o povo foi para as ruas fazer o carnaval de sempre. Justo nesse dia, o 14 de agosto, o Prefeito Mário Correa inaugurava um gerador a diesel na Usina. E foi depois de cortar a fita que o povo se manifestou, num púlpito colocado na esquina sextavada do prédio. O Seu Miguel, que era desembaraçado para qualquer coisa, pediu a palavra e lascou um discurso: Quando Mussussolini (o Duce) invadiu a Missisalbânia (Abissínia), em el año de mil ciento e siete... Nesta altura da louvação havia a intervenção do Papaco para dizer que, fazendo as contas direitinho, havia um erro de data de oitocentos e tantos anos. Mas, o discurso inflamado prosseguia: Em esta hora, em esta hora, yo quisiera ser la gran cachorra de la Inglaterra para pisotear los alemanes y para dar uma mordida no calcanhar del Japon... E se entusiasmava o Seu Miguel exibindo a sua careca: Yo quisiera... Yo quisiera... Do jeito que discursava ele deixou a bola quicando, quicando. Quando repetiu Yo quisiera... pela terceira vez, lá do fundão, sabe? O castelhano Espanton, entrando de gaiato completou: Uma peruca postiça... E detonou o célebre discurso que ficou gravado, até então, na oralidade, como uma das mais bonitas peças do nosso anedotário.

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