Al Di Lá

Você se lembra do filme Candelabro Italiano?

sábado, 8 de novembro de 2008

Sol a pino

Verão brabo. Dentro da minúscula casinha de máquinas a polia da bomba d’água quase não deixava espaço para que um homem se movimentasse. A pouca sombra que havia dentro mal cobria a figura enorme do Bertolino que se sentara num toco de eucalipto. Era chegada a hora em que os aguadores, sempre em dupla, trocariam o turno. Os da vez, já perto, se aproximavam do levante. Na frente, vinha um loiro baixote, barbudo, com um boné na cabeça, aspecto de desleixado e cara de poucos amigos. O outro, que vinha há uns metros atrás, era mais novo, aparentava uns trinta anos, era também baixo, porém moreno, cara imberbe, jeitão alegre. Como seu companheiro, trazia uma bolsa a tiracolo com a garrafa de café que mais tarde tomariam, já frio, com bolachas.
Bertolino, esperando a largada do serviço, estava sem camisa e seu corpo negro, quase azulado, brilhava com o suor que lhe corria pelos poros. Colocara a marmita sobre os joelhos para almoçar a comida trazida pelo loiro. Como de costume, os que eram rendidos no serviço ali mesmo se alimentavam, pois, do levante até o alojamento da granja, havia um eito de terço de légua pela frente.
Junto com o Bertolino, no mesmo turno, seu companheiro, um homem de formas abugradas e que parecia regular de idade. Não mais que cinqüenta anos. Tinham dado com os costados na zona das Capoeiras, quase na mesma época, e sempre foram amigos. Volta em meia, quando o serviço rareava por ser entressafra, eles se separavam por uns tempos. O amigo partia em busca de serviço pelas redondezas, enquanto Bertolino acabava ficando, como agregado, na volta do patrão antigo, como se fosse uma instituição da propriedade. Mais uma vez estavam juntos sorvendo, dia a dia, aquele cheiro bom que a lavoura de arroz exala.
O amigo, terminado o almoço, deixara-se ficar, à sombra de um salso chorão, na beira do açude. Enquanto fazia a digestão esperava o Bertolino almoçar para seguirem juntos até o alojamento. Tudo sem pressa. Mais tarde, quando o dia morresse, a janta, a cama... De manhã, bem cedinho, estariam ali de volta cuidando para que não faltasse água na lavoura.
Dentro da casinha a polia não parava de rodar. Na sombra escassa, o Bertolino, com a maior calma do mundo, dava uma colherada no prato e perdia-se em devaneio mastigando a comida. Sem dar atenção aos dois que haviam a pouco chegado, ele almoçava com aquela paciência infinita que a Virgem Maria, sua protetora, lhe dera. Paciência era o que o Bertolino mais tinha, depois, é claro, da beleza infinita dos dentes de porcelana.
Foi quando, nem bem começado o turno de trabalho, o loiro e o outro estavam se contrariando. Da contrariedade para a altercação foi um passo. Iniciaram os desaforos de parte a parte, com as vozes alteando cada vez mais. Bertolino, sem deixar de mastigar, ignorava os dois que discutiam. Levemente, sem mexer com a cabeça, de quando em quando, ele dava uma levantada nos olhos, em direção a eles, parecendo não se dar conta do que ocorria à sua volta, acostumado às arruaças a que já assistira. Levantou mais outra vez os olhos, baixou-os, outra colherada, e seguiu mastigando, mastigando. Mais outras colheradas...
Dava para ver que em boa coisa não ia terminar aquilo.
Os arruaceiros, de repente, se atracaram a socos e pontapés em direção à porta da casinha do motor onde o Bertolino almoçava. Assim como vinham entraram. Sem espaço para braços e pernas se agredirem, entraram num corpo-a-corpo e apareceram as facas. A polia em movimento, zunia. As facas cortavam o ar a centímetros, a milímetros, do Bertolino, e ele ali, colher no prato, colher na boca, mastigando...
Só quando o cabo duma das facas raspou a sua carapinha grisalha e um cotovelo desviou a colher da sua boca foi que ele, voz grossa, sem perder a calma, sentenciou os homens: - Se virá a minha bóia, vai tê!!!
Sol a pino. Verão brabo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Caro Amigo








Foi sempre com muita atenção que ouvíamos os mais velhos discorrerem sobre velhos assuntos como o desaparecimento do absinto, do rapé, do rum creosotado, dos corsos de carnaval, da 914, do a saúde da mulher, dos aguateiros e nem por isso nos melindrávamos. Os que vieram bem antes de nós contavam histórias em que os veículos se limitavam aos faetons, aos Modelo-T, aos dirigíveis e apreciávamos ouvir que existiram tais velharias. Agora, caro amigo, a ninguém deveria cair mal saber que já foi de brisque andar pelas ruas da cidade a correr numa Lambretta, numa Vespa, numa Java, numa Douglas, só para ficar nas vovozinhas da Bizz, ou passear num Sinca Chambord ou num Gordini quando eles eram o it na metade do século passado. Sabes? Antes, quando ainda estavas na Bolívia, a gente tirava retrato, usava espelhinho no bolso traseiro da calça far-West, pente de osso no bolso da volta ao mundo, usava guides, ia ao cinema ou a uma brincadeira. Às vezes, também se ía aos bailes do Beca, do Doca ou do Chico Barros. Se chovesse, colocávamos galochas para não embarrar o calçado. Na noite, tomávamos Fogo Paulista puro, ou misturado com Crush, Guaraci ou 17. Não chegamos a nos afeitar com navalhas, claro, já havia lâminas, mas, no cabelo usávamos Glostora, Gumex, e, antes de inventarem o Stilleto, primeiro, havia o Amor Gaúcho, depois, mais modernamente, o Toque de Amor da Avon para passearmos cheirosos. Fumávamos Belmonte, Elmo, Continental e apreciávamos comida feita com camarão seco e café com açucar mascavo. Para a fraqueza tínhamos o Wa-Ka-Mo-To e o Elixir de Scott; para mal-estar o Alka Seltzer. Íamos a presépios-vivos, usávamos conga e, por pura exibição, piteiras quando o cigarro ainda não vinha com filtro. Pois é, foi assim que assistimos chegar na cidade a primeira televisão trazida pelo seu Mércio, ouvimos o primeiro rádio da faixa cidadão do seu Otavio, vimos o Marcos Prestes montar o primeiro computador e o João Saraiva nos apresentar a um telescópio. Põe paciência no que lês, meu caro. E não te queixes das velharias que escrevo, pois, pior, foi vivê-las vendo este teu maravilhoso mundo de hoje.

Anistia

Aula de sociologia. O Professor Gilberto Gigante discorria sobre o momento histórico que o País vivia naqueles estertores da ditadura. Na penúltima fila da classe estava sentado o Dedé. Na última fila, atrás dele, o Caluxo Gastal e eu. Do início da matéria até quase o horário de fim de aula o professor tinha, à exaustão, repetido umas trezentas vezes a palavra anistia. Lá pelo meio da aula eu sentia que a cabeça do Dedé tentava se virar para falar conosco, fosse para entrar no nosso assunto de fim de fila, enfadado, talvez, com a chateação do Gigante, ou, quem se animaria a duvidar?, fosse para trocar algum comentário sobre as intenções do Governo Figueiredo. Assim, a aula se arrastava como uma coisa que não tinha fim quando, não se agüentando mais, com a mão em concha na boca, ele se virá para traz e nos pergunta, quase sussurrando: Guris, o que é afinal essa tal de anistia? Eu, me chegando para perto do cogote dele provoquei: o quê!!! Tu ainda não sabes o quê qui é???... Não deu outra. O Dedé, se virando novamente para trás, com o queixo bem encaixado no ombro, revirando e piscando os olhos, me sentenciou: Te mete a esparramar que eu não sei. Te mete...

Tité & Tetê

O Seu Tetê é o motorista com o maior número de histórias desastradas que se tem conhecimento na história do município. Morava na cidade e trabalhava na campanha, onde se locomovia com um fusquinha ano 77. Quando ía, no início da semana, para o local de serviço, sempre causava uma estrepolia na estrada. Na ida, havia sempre um incidentezinho. E, na volta, para não desmerecer a fama de mau condutor, também o Seu Tetê criava uns probleminhas de direção. O normal, já era costume, ele deixar o fusca no chapista, às sextas-feiras, para pegá-lo, restaurado, sem nenhuma arranhão, na segunda, quando ia fazer a pegada na granja. Na estrada, com o automóvel flamante, quando alguém o ultrapassasse, de certeza certa ele dava uma guinada no volante e estava feita a porqueira sobre um barranco. Quando era alguém que se aproximava em sua direção, ele, muito noveleiro, com a curiosidade de conhecer o outro motorista, e cumprimentá-lo, pensando que estava tirando um fininho, lá ía-se um espelho, ou outro dano fatal à lataria. Num fim-de-semana, após a largada, abastecendo o fusca no Posto do Tité, este, já com pistola no tanque de gasolina, perguntou: - Ué, Seu Tetê, o seu carro da última vez que veio aqui não tinha este amassão, no para-lama... Foi, então, que ele, como quem conta uma coisa admirável, entregou sua última barbeiragem: - Tu não acredita, tche!, a ursada que este carro me aprontou... Não vê que eu soltei a embreagem dando uma marcha-à-ré, para sair no portão, e ele disparou ao contrário, para a frente, se planchando na parede da garagem!!! Tava em primeira, o louco!!! Que ursada ele me aprontou... Como nunca... Que ursada!!!

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