Al Di Lá

Você se lembra do filme Candelabro Italiano?

quinta-feira, 1 de setembro de 2011



Fim de Tarde


Juntou uns gravetos de vassoura vermelha no fundo da caixa de lenha e acomodou-os em cima das brasas que dormiam no fogão. O fogo se avivou sob a chapa onde estava a chaleirinha de ferro e a panela da comida que restou do almoço.
Com o porongo do chimarrão na mão – Gerôncio tinha o costume de manusear as tralhas da cozinha segurando a cuia enquanto a erva inchava – olhou contemplativo, pelo retângulo da janela a linha do horizonte que se apagava, tímida, misturando o topo da coxilha com o céu que se encardia ao entardecer. Para os lados do arroio da Divisa, nos pés de turumãs, os jacus já tinham feito a última algazarra do dia e aninhavam-se para enfrentar a noite. No fogão, ardia uma acha de aroeira, manhosamente, mantendo quente a água da chaleira enquanto Gerôncio, submisso pela rotina de uma vida inteira, mateava, esperando pela comida que aquecia devagarzinho... Quieto, matutava...
Naquele cantinho de terra chegara guri ainda e ali, por inúmeras vezes dissera, havia de morrer. Vivera sempre só. Nunca quis achego com rabo de saia. Nem antes, nem agora – repetia, quando se enquadrava o assunto. Até porque já começava a nevar naquela cabeleira que fora vasta e preta denunciando as suas origens afrodescendentes. E, toda vez que lhe vinha o pensamento de um dia deixar a campanha, assaltava-o uma indisfarçável irritação, perturbava-se, seu olhar ficava sem jeito, mudava da noite para o dia. Não, morar na cidade, definitivamente, não. Nem pensar! Se a passeio já era difícil...
Então, desconversando a lembrança, buscava imagens do passado, imagens que lhe davam satisfação. Recordava o tempo em que, quando rijo como uma árvore de lei, atendia as lavouras de subsistência da estância, desde a lavração até a colheita. Agora era posteiro – na verdade era uma mistura de posteiro com agregado – e tinha aos seus cuidados os fundos da estância, para espantar intrusos e reparar as cercas, que sempre havia um consertinho aqui, outro consertinho ali, a fazer, para que a gadaria se mantivesse cuidada. Aposentado, tinha o rancho para morar e, ainda, de troco, ganhava uns cobres como ajuda de custo pelo serviço que continuava prestando. Mais, tinha tempo para cuidar da sua horta onde plantava verduras e da quinta que sempre tinha frutas em abundância, graças ao bom tratamento que ele dispensava a elas.
Pois, no tempo em que começou a se popularizar o rádio portátil, Gerôncio, para aderir à moda, trabalhou uma safra inteirinha poupando seu salário para comprar um. Certo dia, negociou com um mascate um Philcão que mais parecia uma mala, de tão grande. Foi comprar o rádio e dar adeus à solidão. A partir daí sua preocupação era não deixar faltar energia ao aparelho. Para mantença, ele era prevenido e sempre tinha várias cargas de pilha. Umas, pouco usadas, outras usadotas, outras fracas, mas ainda servindo. E, assim, era raro, para dizer, raríssimo, pegarem ele sem rádio funcionando. Podia não ligá-lo quando havia muita descarga de tormenta, mas era só, também. Rádio sempre ligado quando ele estava na lida da casa ou se recolhia para o descanso. Manhã escura, ainda, acordava com tenência no rádio e, antes de botar o pé para fora da cama já estava com ele ligado. Quando manuseava os avios para o mate e remexia a caixa de lenha à procura de um graveto para começar o fogo, já as primeiras notícias da manhã enchiam de vida o ranchinho construído de leiva. Tinha um rádio como campanheiro e bastava – como ele dizia. E dá-lhe, noticiário e dá-lhe, música gauchesca!
Depois da janta pitava, deitado, um enroladinho para em seguida dormir como criança pequena – que vida se não fosse a morte...
Um dia, já vaqueano de tanto bulir com o rádio, Gerôncio, que não era muito de se abrir confessou pro Tacico um desejo:
- Da vida, só quero uma coisa: não quero morrer sem antes conhecer Canguçu, Nova Iorque e Passo Fundo, terra onde nasceu o Teixeirinha!

Nenhum comentário:

Visitantes

Marcadores