Verão brabo. Dentro da minúscula casinha de máquinas a polia da bomba d’água quase não deixava espaço para que um homem se movimentasse. A pouca sombra que havia dentro mal cobria a figura enorme do Bertolino que se sentara num toco de eucalipto. Era chegada a hora em que os aguadores, sempre em dupla, trocariam o turno. Os da vez, já perto, se aproximavam do levante. Na frente, vinha um loiro baixote, barbudo, com um boné na cabeça, aspecto de desleixado e cara de poucos amigos. O outro, que vinha há uns metros atrás, era mais novo, aparentava uns trinta anos, era também baixo, porém moreno, cara imberbe, jeitão alegre. Como seu companheiro, trazia uma bolsa a tiracolo com a garrafa de café que mais tarde tomariam, já frio, com bolachas.Bertolino, esperando a largada do serviço, estava sem camisa e seu corpo negro, quase azulado, brilhava com o suor que lhe corria pelos poros. Colocara a marmita sobre os joelhos para almoçar a comida trazida pelo loiro. Como de costume, os que eram rendidos no serviço ali mesmo se alimentavam, pois, do levante até o alojamento da granja, havia um eito de terço de légua pela frente.
Junto com o Bertolino, no mesmo turno, seu companheiro, um homem de formas abugradas e que parecia regular de idade. Não mais que cinqüenta anos. Tinham dado com os costados na zona das Capoeiras, quase na mesma época, e sempre foram amigos. Volta em meia, quando o serviço rareava por ser entressafra, eles se separavam por uns tempos. O amigo partia em busca de serviço pelas redondezas, enquanto Bertolino acabava ficando, como agregado, na volta do patrão antigo, como se fosse uma instituição da propriedade. Mais uma vez estavam juntos sorvendo, dia a dia, aquele cheiro bom que a lavoura de arroz exala.
O amigo, terminado o almoço, deixara-se ficar, à sombra de um salso chorão, na beira do açude. Enquanto fazia a digestão esperava o Bertolino almoçar para seguirem juntos até o alojamento. Tudo sem pressa. Mais tarde, quando o dia morresse, a janta, a cama... De manhã, bem cedinho, estariam ali de volta cuidando para que não faltasse água na lavoura.
Dentro da casinha a polia não parava de rodar. Na sombra escassa, o Bertolino, com a maior calma do mundo, dava uma colherada no prato e perdia-se em devaneio mastigando a comida. Sem dar atenção aos dois que haviam a pouco chegado, ele almoçava com aquela paciência infinita que a Virgem Maria, sua protetora, lhe dera. Paciência era o que o Bertolino mais tinha, depois, é claro, da beleza infinita dos dentes de porcelana.
Foi quando, nem bem começado o turno de trabalho, o loiro e o outro estavam se contrariando. Da contrariedade para a altercação foi um passo. Iniciaram os desaforos de parte a parte, com as vozes alteando cada vez mais. Bertolino, sem deixar de mastigar, ignorava os dois que discutiam. Levemente, sem mexer com a cabeça, de quando em quando, ele dava uma levantada nos olhos, em direção a eles, parecendo não se dar conta do que ocorria à sua volta, acostumado às arruaças a que já assistira. Levantou mais outra vez os olhos, baixou-os, outra colherada, e seguiu mastigando, mastigando. Mais outras colheradas...
Dava para ver que em boa coisa não ia terminar aquilo.
Os arruaceiros, de repente, se atracaram a socos e pontapés em direção à porta da casinha do motor onde o Bertolino almoçava. Assim como vinham entraram. Sem espaço para braços e pernas se agredirem, entraram num corpo-a-corpo e apareceram as facas. A polia em movimento, zunia. As facas cortavam o ar a centímetros, a milímetros, do Bertolino, e ele ali, colher no prato, colher na boca, mastigando...
Só quando o cabo duma das facas raspou a sua carapinha grisalha e um cotovelo desviou a colher da sua boca foi que ele, voz grossa, sem perder a calma, sentenciou os homens: - Se virá a minha bóia, vai tê!!!
O amigo, terminado o almoço, deixara-se ficar, à sombra de um salso chorão, na beira do açude. Enquanto fazia a digestão esperava o Bertolino almoçar para seguirem juntos até o alojamento. Tudo sem pressa. Mais tarde, quando o dia morresse, a janta, a cama... De manhã, bem cedinho, estariam ali de volta cuidando para que não faltasse água na lavoura.
Dentro da casinha a polia não parava de rodar. Na sombra escassa, o Bertolino, com a maior calma do mundo, dava uma colherada no prato e perdia-se em devaneio mastigando a comida. Sem dar atenção aos dois que haviam a pouco chegado, ele almoçava com aquela paciência infinita que a Virgem Maria, sua protetora, lhe dera. Paciência era o que o Bertolino mais tinha, depois, é claro, da beleza infinita dos dentes de porcelana.
Foi quando, nem bem começado o turno de trabalho, o loiro e o outro estavam se contrariando. Da contrariedade para a altercação foi um passo. Iniciaram os desaforos de parte a parte, com as vozes alteando cada vez mais. Bertolino, sem deixar de mastigar, ignorava os dois que discutiam. Levemente, sem mexer com a cabeça, de quando em quando, ele dava uma levantada nos olhos, em direção a eles, parecendo não se dar conta do que ocorria à sua volta, acostumado às arruaças a que já assistira. Levantou mais outra vez os olhos, baixou-os, outra colherada, e seguiu mastigando, mastigando. Mais outras colheradas...
Dava para ver que em boa coisa não ia terminar aquilo.
Os arruaceiros, de repente, se atracaram a socos e pontapés em direção à porta da casinha do motor onde o Bertolino almoçava. Assim como vinham entraram. Sem espaço para braços e pernas se agredirem, entraram num corpo-a-corpo e apareceram as facas. A polia em movimento, zunia. As facas cortavam o ar a centímetros, a milímetros, do Bertolino, e ele ali, colher no prato, colher na boca, mastigando...
Só quando o cabo duma das facas raspou a sua carapinha grisalha e um cotovelo desviou a colher da sua boca foi que ele, voz grossa, sem perder a calma, sentenciou os homens: - Se virá a minha bóia, vai tê!!!
Sol a pino. Verão brabo.



























Domingo de verão. Cancha dos Bonneau. Década de 50. Desde cedo da manhã a Verruga, camioneta do João Rodrigues, fazendo corridas, carregando gente até a cancha. Desafios de mais de dois meses com arremates no Café do João Ticató, na tarde do Sábado. O cavalo do Xandoca tinha o nome de Apache, viera do Povo Novo e correria com o Baio do Aquilino. Antes do pleito principal os outros arremates. A última, a carreira grande, fugindo ao costume de correr às duas da tarde, estava marcada para as seis horas, bem antes de o sol entrar, com desempate combinado para a manhã do dia seguinte, o que aumentaria as expectativas e as apostas. O churrasco, naqueles bons tempos, com tudo patrocinado pelos desafiantes, tinha como acompanhamento uma salada campeira e cerveja, que vinha gelada da cidade, em desabaladas correrias, num fordeco Modelo A, com carroceria, do Lauro Hernandez. No local havia uma carpa que o João do Cantalício montara em sociedade com o Papaco onde vendia gasosa e uma caninha que fazia sucesso na época e era chamada de Atitude. O dia corria bonito, como nunca - dentro da carpa, o truco; fora, o jogo do osso, rolando solto, à sombra dos eucaliptos - quando, quase ao meio-dia, ouviu-se aquela gritaria, lá para os lados da carpa. Corre daqui, corre dali, alguém estava passando mal e já providenciavam socorro. Deveras, o Constantino, que fizera lastro para o churrasco, alternando rodelas de lingüiça com caninha, se engraxara cedo e jazia deitado num banco, com os olhos esbugalhados, espumando pela boca, irreconhecível, numa ronqueira que inspirava cuidados. Esperava traslado para a Santa Casa. Parecia enfarte, derrame, decerto algo grave, devido às evidências... Lá chegado o doente, bem examinado pelo estetoscópio, mais o exame rigoroso de pálpebras, veio à luz, num ataque de riso do Doutor Dionísio, o diagnóstico: Borracheira!!!... O Constantino, depois de chamar o hugo, tinha juntado do chão a dentadura e a colocara invertida. Foi só destrocar a prótese inferior pela superior e ele melhorou na hora. Passada a broma, o único prejuízo foi não ver o Baio do Aquilino perder mais uma das carreiras em que foi assinado...



No Princípio era o Verbo…? Não, não. Antes, eram os bailes do Celedino, pai da Carola e os da Dona Chiquinha, mãe do Julinho do Pedetê. Local dos bailes? Vila São Gabriel, à época em que ela só tinha um corredor que atualmente é a Rua Borges de Medeiros, bem mais alargada. O acesso se dava pela estrada do Porto, hoje engolida pela Avenida Maria Pereira das Neves. Sempre às tardes de domingo. Tinham, em ambos os bailes, lá pelo meio da tarde, as polcas da vassoura e a do verso. Naquela, o dono, com uma vassoura na mão, virada o cabo para baixo, batia-a no chão de terra batida do salão. Quando parava era a hora dos pares se trocarem. Admirável a ingenuidade dos moços de então (à vista dos de hoje éramos uns abombados)... Mesmo assim, já na chegada ao recinto, dávamos um jeito de ver onde estava colocada a vassoura. A partir daí cuidávamos o momento em que ela era buscada e nos posicionávamos perto das moças desejadas, e bem escolhidas previamente. O moço do par que se atrasasse levava a multa de não dançar as próximas três marcas. Tempo suficiente para roubar-lhe o par até o fim da brincadeira, sem dar chances (as feias que nos perdoassem, mas não iríamos nunca, nem mortos, juntar a fome com a necessidade de comer). Na outra modalidade de polca havia um outro tipo de castigo aos moços: faziam-se e refaziam-se os pares, e sempre restando um moço que deveria por multa dizer uma trova, a cada marca, para pegar, então, a moça que sobraria. Nesta troca, para dizer o versinho, procurávamos nos posicionar, também, perto da mais linda. Tudo muito bem decoradinho. Foi num destes bailes da Dona Chiquinha, com o piso já pedindo uma aguinha para baixar o pó entranhado nas narinas, com quase todos os pares consolidados, que o Tité, dançando já meio cansado da moça que escolhera, para poder dizer um verso debochado, inventou de sobrar. Num canto do salão o Alcides Furão, que nunca dançava, quieto, como era o seu jeito, a tudo assistia atentamente. Ele era presidente, tesoureiro, massagista, guarda-esporte e dono da sede do famoso time de futebol Leão da Vila, primeiro time de subúrbio da cidade (o técnico era o Julinho do Pedetê). Tinha o apelido de Furão, por conta de seu nariz adunco, o que deu mote para a glosa lascada pelo Tité: “Alecrim da beira d’água/não se cria de raiz/nunca vi moço bonito/com três palmos de nariz...”. Não prestou. A carapuça já existia há séculos e o Alcides não se fez de rogado. Vestiu-a. Num agarra daqui, agarra dali, terminou o baile e o baile ía em direção à casa do Castelhano Pereira, com a coisa osca para o lado do versejador. Foi com a turma do deixa disso agarrando o ofendido, que pedia briga, e numa saída parecida com a do Camerini tirando o band-aid que pusera na cara do Doca, que o Tité, também ainda agarrado, berrava sentenciando o Furão: Não jogo mais no teu time... Tu não sabes brincar... Não jogo mais no Leão da Vila!
